Em todos os tempos a Igreja de Roma ocupou um lugar totalmente privilegiado na Igreja católica. Quando ainda vivia em Efeso o Apóstolo São João, os coríntios escreveram ao Papa São Clemente de Roma para dirimir as suas controvérsias. Este apelo à autoridade romana renovou-se regularmente no decurso dos séculos, por exemplo, no momento da controvérsia sobre a data da Páscoa, com o Papa São Victor, e quando surgiu a controvérsia sobre o batismo dos hereges, no tempo do Papa Santo Estevão. Esta prática era, de fato, o reflexo da primazia conferida por Cristo a São Pedro, primazia que foi definida ante todo o mundo pelos concílios. Mas esta primazia de Roma, além do seu aspecto teológico, tem um aspecto histórico: São Pedro veio a Roma, ocupou a sede episcopal desta cidade, morreu nela, e foi ali enterrado.
É verdade que, nos tempos da reforma protestante, se colocou em dúvida esta certeza histórica, como mostram as palavras de Lutero: “Eu atrevo-me a dizer, pois o ouvi em Roma, que ninguém sabe com certeza onde repousam os restos de São Pedro e São Paulo, nem tampouco se estão aí de fato. O Papa e os cardeais sabem perfeitamente que é algo duvidoso”. (Contra Papatum Romanum, a diabolo inventum – Contra o Papado Romano, invento do diabo).
Para não descuidar os fundamentos históricos e apologéticos da nossa fé católica, vamos estabelecer os pontos seguintes: o martírio de São Pedro em Roma e a existência do seu túmulo sob o altar-mor da basílica de São Pedro.
O MARTÍRIO DE SÃO PEDRO EM ROMA
São Pedro veio a Roma e em Roma morreu
Antes de estabelecer de um modo positivo o fato do martírio de São Pedro em Roma, convém recordar esta prova negativa: que ninguém assinalou nunca para a tumba de São Pedro um lugar diferente de Roma.
Mas podemos ir mais longe, já que a Sagrada Escritura nos permite estabelecer positivamente o fato do martírio de São Pedro em Roma. Assim, a 1ª epístola de São Pedro: “Saúda-vos a igreja que está em Babilônia” (5, 13). A Tradição estabelece que São Pedro ocupou sucessivamente as sedes episcopais de Jerusalém, Antioquia e Roma; mas também demonstra que nunca esteve em Babilônia. Assim pois, como saúda da parte da igreja que está em Babilônia?
A resposta não oferece dúvidas para os contemporâneos dos judeus do século I: Babilônia era o nome que São Pedro dava a Roma por causa da sua corrupção. Assim, com este texto tão curto, São Pedro situa-nos no itinerário da sua estadia em Roma.
Estes elementos foram definitivamente confirmados pelos primeiros Padres apostólicos, como São Clemente de Roma, o terceiro sucessor de São Pedro na sé romana, que nos fala da perseguição de Nero e do martírio de São Pedro e São Paulo como fatos históricos (1ª carta aos Coríntios, 1, 5-6). E Santo Inácio de Antioquia que, de caminho para Roma, assinala numa carta aos romanos o martírio de São Pedro e São Paulo nesta cidade (Carta aos Romanos 4).
São Pedro morreu crucificado
Outra passagem da Sagrada Escritura, o último capítulo do Evangelho de São João, permite-nos vislumbrar que gênero de suplício ia sofrer S. Pedro, pois Nosso Senhor lhe predisse: “Em verdade te digo que quando eras jovem tu mesmo te cingias e andavas onde querias; mas quando fores velho estenderás as tuas mãos e outro te levará para onde não queres. Disse isto para indicar com que morte ia dar glória a Deus. Dito isto, acrescentou: segue-me” (21, 18-19).
Com estas palavras se anunciou ao chefe dos Apóstolos que ia seguir Nosso Senhor (“Segue-me”) e também a maneira como ia morrer (“Estenderás as tuas mãos”). A tradição que refere que foi crucificado de cabeça para baixo funda-se nos Fatos de Pedro (apócrifo) e na História Eclesiástica de Eusébio de Cesárea (3, 1-2).
São Pedro nas colinas vaticanas
O Vaticano é um lugar que se situa na margem direita do Tibre. Julgado como insalubre, o lugar foi destinado a vários usos, mas a maior parte do terreno fazia parte dos jardins de Nero. Nesse lugar encontrava-se o circo do imperador (começado na realidade por Calígula e terminado por Nero), alguns palácios à borda do Tibre, casas de pastores e cemitérios.
Vários autores cristãos do século II atestam que São Pedro deu a sua vida por Cristo neste circo de Nero. Mas muito mais importante é o testemunho de Tácito nos seus Anais (15, 38-45), onde nos conta o incêndio que devastou Roma de 18 a 28 de Julho do ano 64. Nero tinha a idéia de reconstruir rapidamente a cidade, e os seus projetos fizeram recair sobre ele as suspeitas de ter causado o incêndio. Nesse momento, Nero acusou os cristãos do delito e fê-los martirizar nos jardins do Vaticano. Tácito confirma-nos igualmente que um dos suplícios do circo de Nero foi a crucifixão.
O TÚMULO DE SÃO PEDRO EM ROMA
As escavações de São Pedro
Desde tempos imemoriais, a tradição situava o túmulo de São Pedro sob o altar da basílica vaticana. Assim, o sábio Gayo, já em tempos do Papa Zeferino (198-217), fala-nos dos “despojos de São Pedro no Vaticano” (Eusébio de Cesárea, História Eclesiástica II, 25, 5-7). Contudo, apesar das construções sucessivas da basílica vaticana, não se tinha realizado nenhuma investigação sistemática, com receio de cometer um sacrilégio ou pela crença numa maldição.
Houve que esperar até 28 de Junho de 1939 para que o Papa Pio XII desse ordem de começar as escavações. O árduo trabalho prolongou-se desde 1939 a 1949, sob a direção de Mons. Ludwig Kaas, secretário ecônomo da fábrica de São Pedro, com um grupo de pessoas que não eram especialistas.
Em 1951 deu-se à luz o resultado oficial das escavações, segundo o qual existia uma interrogação acerca do túmulo que se tinha encontrado, pois estava vazio e não se tinha achado nenhum rasto explícito da presença de São Pedro (Dictionnaire d’Arquéologie Chrétienne et de Liturgie [D.A.C.L.], XV, 3291-3346).
Em 1952 iniciou-se outra série de escavações, nas quais participou, a título de especialista em epigrafia, Margarita Guarducci. Estas escavações permitiram descobrir toda uma necrópole no Vaticano. Quando o circo de Nero foi abandonado, o terreno foi invadido por monumentos funerários. Esta necrópole foi descoberta a nove metros e meio do nível atual da basílica, e compunha-se de mausoléus de pagãos ricos e de cristão conversos.
Não há dúvida que esta necrópole havia gozado de uma importância particular para Constantino, que foi o construtor da primeira basílica no ano de 321, pois, para poder construí-la na colina vaticana, teve que enterrar esta necrópole que ainda se utilizava e aplanar a colina em toda a sua extensão. Por que tantos inconvenientes e trabalhos para situar a basílica nesse preciso lugar, se não porque tinha um valor particular?
O túmulo de São Pedro
O túmulo do Apóstolo era primeiramente uma simples fossa, que nos anos 150-160 foi coberta com um monumento funerário. Este monumento, encostado a um muro vermelho, estava situado do lado Oeste do campo «P». A datação deste monumento fez-se graças às telhas que cobriam a cloaca descoberta sob o «clivus» que estava do lado oeste do muro vermelho.
O monumento era formado por dois nichos sobrepostos, separados por uma espécie de tábua sustentada por duas pequenas colunas. No solo encontrava-se uma abertura fechada por uma lousa móvel. De notar que os fundamentos do monumento formam um nicho, semelhante aos que são visíveis sobre o túmulo de São Pedro. Semelhante a outros monumentos da época, esta edificação parece estar particularmente relacionada com um lugar: o do sepulcro dos Apóstolos. Este fato é confirmado pela carta de Gayo, o qual, para refutar as pretensões de superioridade de uma seita montanista oriental que devia possuir a tumba do Apóstolo Filipe, responde: “Mas eu posso mostrar-te os despojos dos Apóstolos se queres vir ao Vaticano ou à via de Ostia, verás os despojos dos que fundaram esta igreja” (Eusébio de Cesárea, História Eclesiástica II, 25, 3-7).
Em meados do século III, construiu-se um muro «g» perpendicular ao muro vermelho do seu lado direito, e logo, à esquerda, um muro similar, para respeitar a simetria. Este muro «g» foi coberto de inscrições antes de ser, nos tempos de Constantino, recoberto por um monumento quadrangular que apenas deixava ver as colunas e os nichos do lado oeste. No muro «g» abriu-se um «loculus», isto é, um nicho, recoberto de mármore.
Entre os anos 322 e 337 construiu-se a basílica constantiniana. O Papa São Gregório Magno (590-604) mandou recobrir o monumento de Constantino com um altar e o Papa Calisto II (1119-1124) fez o mesmo com o altar de São Gregório.
Em 1506 iniciaram-se os trabalhos da atual basílica, cujo altar (de Clemente VIII) recobriu o de Calisto II. Desta maneira, do altar atual ao túmulo original, havia sobreposição.
O fato de que este monumento continha os restos de São Pedro está confirmado pelas inscrições descobertas na necrópole e no muro «g». Por exemplo, no mausoléu dos Valérios há uma inscrição em que se pede a Pedro por aqueles cristãos que estão enterrados perto do seu corpo: “Petrus roga pro sanc(ti)s hom(ini)bus Chrestianis ad co(r)pus tuum sep(ultis)”. Neste mesmo muro «g» acham-se muitos «graffiti» (como a sobreposição de um P e de um E) que aludem a Pedro. Por último, um dos «graffiti» em grego no muro «g» diz claramente “Petr[os] eni”: Pedro está aqui. Este último «graffiti» está intimamente relacionado com o muro «g» e o «loculus».
O Corpo de São Pedro
A descoberta do sepulcro de São Pedro exatamente sob a basílica vaticana põe definitivamente fim às calúnias contrárias a esta tradição imemorial.
Mas nem todos os elementos foram satisfatórios, pois o túmulo do monumento estava vazio. Só se encontraram ossadas em três lugares: 1) no campo «P» que é o lugar da fossa e o espaço ao seu redor; 2) sob os fundamentos do muro «g»; e 3) no «loculus» do muro «g».
Todos estes ossos, ignorados durante certo tempo, foram examinados unicamente a partir de 1953. Nesse momento soube-se que os ossos que se haviam encontrado sob os fundamentos dos muros correspondiam a dois homens e a uma anciã, e os ossos achados no campo «P» correspondiam a quatro indivíduos.
Entre o mês de Outubro de 1962 e Junho de 1963 procedeu-se ao exame antropológico dos ossos achados no «loculus» e que se tinham conservado numa caixa de madeira. E aqui foi a surpresa.
Estes ossos correspondem ao esqueleto de um homem robusto de uns 60 ou 70 anos de idade. Encontraram-se misturados com estes ossos restos de um tecido de púrpura incrustado de ouro, um pouco de terra, ossos de animais, moedas e pedacinhos de mármore (cf. D.A.C.L. XV, 3326).
Tudo concorda com fatos históricos já conhecidos:
- a terra e os ossos de animais correspondem ao enterro de São Pedro no campo «P»;
- a púrpura, cor imperial, manifesta o respeito para com as relíquias do chefe dos Apóstolos que haviam tido quem construísse o monumento constantiniano; Os fios do tecido são tingidos de púrpura verdadeira e envoltos em finíssimas laminas de oro.
- as moedas foram introduzidas no «loculus» pelas fissuras do reboco, pois o «loculus» nunca foi aberto;
- o mármore é o que recobria o interior do «loculus».
Todas estas relíquias, cujas características correspondem às de São Pedro, foram novamente colocadas no «loculus» em 27 de Junho de 1968, por vontade do papa Paulo VI.
Ossos de animais!
Observou-se em seguida a presença também de alguns ossos de animais domésticos, boi, porco, ovelha e galinha. Apresentam as mesmas características que os ossos humanos quanto às alterações físicas. Como os ossos humanos, são marcados pela umidade e a analise do pó que se pegou a eles revela que provêm do mesmo lugar, da mesma terra. Mostram em definitiva o extremo cuidado dos que recolheram os ossos de São Pedro no fim do século III ou nos primeiros anos do século IV. Procurando esses ossos na fossa que foi a primeira sepultura do Apóstolo, não quiseram correr o risco de deixar de lado qualquer um deles e guardavam todos os ossos que lá encontravam.
Outra surpresa foi a de encontrar com esses ossos do “loculus”, outros, limpos e brancos, sem sinal de umidade. Analisando-os o professor Correntini não tardou em achar que eram todos de um só animal…um ratozinho! A pergunta que surgiu então foi saber como um ratozinho pôde conseguir entrar e morrer no nicho. Uma nova analise do “loculus” permitiu evidenciar que jamais ele foi aberto ou violado, ninguém mexeu no muro e nas paredes de mármore até o século XX. Agora, descobriram fissuras no muro “g”, algumas terminando no nicho. E não só isso, senão a presença nelas de moedas de séculos anteriores! Ao mesmo tempo em que se explicava a presença do ratozinho se solucionava a objeção das moedas encontradas no nicho com datas cumpridas entre o século IV e o século XII! Comprovou-se que as moedas lançadas pelos devotos e peregrinos caiam muitas vezes pelas fissuras e se perdiam não só até o campo da fossa inicial de São Pedro senão também nos muros fendidos. Quando no século XII o Papa Calisto II mandou recobrir o altar de São Gregório com outro novo, também tapou a janelinha que permitia aos peregrinos satisfazer suas piedosas devoções… e não podiam mais lançar moedas por dentro!
CONCLUSÃO
Em 1964, todo esse admirável trabalho de pesquisa paciente estava concluído. Margarita Guarducci entregou um dossiê completo ao Papa Paulo VI com todos os resultados, analises e conclusões dos cientistas. Todas as objeções estavam examinadas e resolvidas. Não tinha mais lugar para as duvidas, só se esperava a palavra oficial e pública do sucessor de São Pedro. Essa voz se fará ouvir com certeza, mas não no ano 1964, não durante o concílio Vaticano II, não na providencial presença em Roma da maior parte da Hierarquia da Santa Igreja, não tampouco na presença dos observadores ortodoxos e protestantes convidados pelo Papa nessa ilustre assembléia. Não, infelizmente o Papa não aproveitará essa oportunidade excepcional para mostrar a tudo o mundo que o ensino da Tradição e a fé do Papa Pio XII estavam amplamente confirmados pelos trabalhos das escavações debaixo da basílica de São Pedro.
Haverá de esperar o ano 1968, a festa dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, para ouvir da boca do Papa Paulo VI a afirmação explicita da presença das relíquias de São Pedro no seu túmulo. Dez anos depois, poucas semanas antes de morrer, na altura também da festa dos dois grandes Apóstolos, o Papa afirmará de novo essa presença bendita de São Pedro em Roma. Ao menos lembremo-nos disto quando alguns modernistas tentam afirmar o contrário!
Mas deixemos que Margarita Guarducci, cujo livro “Saint Pierre retrouvé” resumimos (Ed. Saint Paul, 1974 – uma tradução em português está atualmente em preparação), nos dê a conclusão:
“Sem clamor algum [em 27 de junho de 1968], quase em silêncio, São Pedro regressou à sua igreja. Preencheu-se um grande vazio.
Hoje, quando o Papa celebra a missa na basílica, encontram-se de novo debaixo do seu altar, no lado do Evangelho, os restos do seu primeiro predecessor, daquele homem que conheceu Cristo, ouviu a sua voz, foi testemunha dos seus milagres, participou na Última Ceia e recebeu do Mestre ressuscitado e antes de subir ao céu, o mandamento de apascentar os seus cordeiros.
Os despojos do Eleito de Cristo, do príncipe dos Apóstolos, encontram-se outra vez onde descansaram durante mais de dezesseis séculos, no «loculus» de mármore no interior do monumento rodeado de pórfiro, em que o primeiro imperador cristão os havia colocado com todas as honras, com o fim de conservá-los para a veneração dos séculos vindouros” (op. cit., pg. 149).
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