A razão por que muitos em nossos tempos 
não acreditam no inferno, é que nunca tiveram explicação exata do que 
ele significa: é frequente conceber-se o inferno como castigo que Deus 
inflige de maneira mais ou menos arbitrária, como se desejasse impor-se 
vingativamente como Soberano Senhor; o réprobo seria atormentado 
maldosamente por demônios de chifres horrendos, em meio a um incêndio de
 chamas, etc. — Não admira que muitos julguem tais concepções inventadas
 apenas para incutir medo ; não seriam compatíveis com a noção de um 
Deus Bom.
Na verdade, o inferno não é mais do que a
 consequência lógica de um ato que o homem realiza de maneira consciente
 e deliberada aqui na terra; é o indivíduo quem se coloca no inferno 
(este vem a ser primàriamente um estado de alma; vão seria preocupar-se 
com a sua topografia) ; não é Deus quem, por efeito de um decreto 
arbitrário, para lá manda a criatura, É o que passamos a ver.
Admitamos que um homem nesta vida 
conceba ódio a Deus (ou ao Bem que ele julgue ser o Fim último, Deus) e O
 ofenda em matéria grave, empenhando toda a sua personalidade (pleno 
conhecimento de causa e liberdade de arbítrio); essa criatura se coloca 
num estado de habitual aversão ao Senhor. Caso morra nessas condições, 
sem retratar, nem mesmo no seu íntimo, o ódio ao Sumo Bem, que sorte lhe
 há de tocar?
A morte confirmará definitivamente nessa
 alma o ódio de Deus, pois a separará do corpo, que é o instrumento 
mediante o qual ela, segundo a sua natureza, concebe ou muda suas 
disposições. Depois da morte, tal criatura de modo nenhum poderá desejar
 permanecer na presença de Deus; antes espontaneamente pedirá afastar-se
 d'Ele. Não será necessário que, para isto, .o Juiz supremo pronuncie 
alguma sentença; o Senhor apenas reconhecerá, da sua parte, a opção 
tomada pela criatura ; Ele a fez livre e respeitará esta dignidade, em 
hipótese nenhuma forçando ou mutilando o seu alvitre.
Eis, porém, que desejar afastar-se de 
Deus e permanecer de fato afastada, vem a ser, para a alma humana, o 
mais cruciante dos tormentos. Com efeito, toda criatura é essencialmente
 dependente do Criador, do qual reflete uma imagem ou semelhança ; por 
conseguinte, ela tende por sua própria essência a se conformar ao seu 
Exemplar (é a natureza quem o pede, antecedentemente a qualquer opção da
 vontade livre); caso o homem siga esta propensão, ele obtém a sua 
perfeição e felicidade. Dado, porém, que se recuse, a fim de servir a si
 mesmo, não pode deixar de experimentar os protestos espontâneos e 
veementíssimos da natureza violentada. A existência humana torna-se 
então dilacerada : o pecador sente, até nas mais recônditas profundezas 
do seu ser, o brado para Deus ; esse brado, porém, ele o sufocou e 
sufoca, para aderir a um fim inadequado, fim que, em absoluto, ele não 
quer largar apesar do terrível tormento que a sua atitude lhe causa. — 
Na vida presente, a dor que o ódio ao Sumo Bem acarreta, pode ser 
temperada pela conversão a bens aparentes, mas precários..., pela 
auto-ilusão ; na vida futura, porém, não haverá possibilidade de engano!
É nisto que consiste primariamente o 
inferno. Vê-se que se trata de uma pena infligida pela ordem mesma das 
coisas, não de uma punição especialmente escolhida , entre muitas outras
 por um Deus que se quisesse “vingar” da criatura. Em última análise, 
dir-se-á que no inferno só há indivíduos que nele querem permanecer. — A
 este tormento espiritual se acrescenta no inferno uma pena física, 
geralmente designada pelo nome de fogo; certamente não se trata de fogo 
material, como o da terra, mas de um sofrimento que as demais criaturas 
acarretam para o réprobo, e acarretam muito naturalmente. Sim; quem se 
incompatibiliza com o Criador não pode deixar de se incompatibilizar com
 as criaturas, mesmo com as que igualmente se afastaram de Deus (o 
pecador é essencialmente egocêntrico), de sorte que os outros seres 
criados postos na presença do réprobo vêm a constituir para este uma 
autêntica tortura (não se poderia, porém, precisar em que consiste tal 
tormento).
Por último, entende-se que o inferno não
 tenha fim ; há de ser tão duradouro quanto a alma humana, a qual por 
sua natureza é imortal; Deus não lhe retira a existência que lhe deu e 
que, em si considerada, é grande perfeição. Embora infeliz, o réprobo 
não destoa no conjunto da criação, pois por sua dor mesma ele proclama 
que Deus é a Suma Perfeição, da qual ele se alheou (é preciso, nos 
lembremos bem de que Deus, e não o homem, é o centro do mundo).
Não se pense em nova “chance” ou 
reencarnação neste mundo. Esta, de certo modo, suporia que Deus não leva
 a sério as decisões que o homem toma, empenhando toda a sua 
personalidade; o Senhor não trata o homem como criança que não merece 
respeito. De resto, a reencarnação é explicitamente excluída por textos 
da Sagrada Escritura como os que se acham citados sob o no 8 deste 
fascículo.
Eis a autêntica noção do inferno, que às vezes é encoberta por descrições demasiado infantis e fantasistas.
Por D. Estêvão Bettencourt
  
Veja a propósito E. Bettencourt, A vida que começa com a morte (ed. AGIR) Cap. VI. Download Católico

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