“Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” [1], ensinou Nosso Senhor. A separação entre Igreja e Estado é uma das contribuições mais importantes da religião cristã para a história da humanidade. Mas, como promover uma justa laicidade do Estado, sem cair no perigo do “laicismo”? O que se pode esperar politicamente da Igreja, seja qual for o contexto histórico e geográfico em que o mundo se encontre?
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Nos últimos anos, de fato, os Papas têm insistido em que a Igreja tem um papel bem específico para dar à política, qual seja – importa que se diga, desde o começo – o de converter os corações a Cristo. Para mostrar de modo bem concreto como isso acontece, é importante resgatar uma história que se passou na Europa, no século XI, à época do grande Papa São Gregório VII.
Nos anos 1000, a Igreja tinha diante de si a difícil questão das investiduras, em que líderes políticos – senhores feudais, reis e príncipes – tomavam para si o encargo de escolher os cargos eclesiásticos. Essa ingerência política, que afetava desde abades e sacerdotes a bispos e Papas, teve como consequência uma grande decadência moral. Pouco preocupados com o bem espiritual dos fiéis, os poderosos deste mundo colocavam à frente da Igreja pastores verdadeiramente indignos do ofício eclesiástico. Nesses tempos difíceis – com razão associados à imagem das “trevas” –, tinha-se o celibato em pouca conta e, de acordo com a veemente denúncia de São Pedro Damião, em seu Liber Gomorrhianus [2],era preocupante o número de homossexuais no clero.
Para reformar a Igreja, São Gregório VII, eleito ao sólio pontifício em 1057, tinha de enfrentar Henrique IV, o petulante príncipe do Sacro Império Romano Germânico que mandava e desmandava na Igreja da Alemanha. Após um decreto de 1075, em que se condenava toda a investidura laica, a obstinação de Henrique fez Gregório pronunciar contra ele a sentença de excomunhão e depô-lo do trono imperial: “Proíbo o rei Henrique, que, com um orgulho insensato, se levantou contra a Igreja, de governar o reino da Alemanha e da Itália; desligo todos os cristãos do juramento que lhe tenham prestado e proíbo quem quer que seja de reconhecê-lo como rei” [3]. Roma locuta, causa finita. Para recuperar o poder perdido, o soberano do Império Germânico se dirige, então, a Canossa, onde residia o Papa, com uma pequena escolta e sob o inverno rigoroso dos Alpes, em busca do perdão do sucessor de Pedro. Uma cena pitoresca, sem dúvida: o poderoso imperador da Alemanha deposto por um bispo inerme e sem exército, a quem ele agora acorria, prostrado.
Com efeito, como a Igreja conseguiu isso? Como foi capaz de uma influência política de tal monta?
O segredo está num silencioso mosteiro fundado no interior da França, na cidade de Cluny, em 910. Favorecido pela dispensa da jurisdição dos bispos locais e submissão direta ao Romano Pontífice, o mosteiro de Cluny, ao qual se ligou, rapidamente, uma constelação de outras abadias em toda a Europa, tornou-se, em pouco tempo, uma verdadeira escola de santidade. Enquanto o século X passava por uma dolorosa crise do papado, essa Ordem empreendia uma autêntica renovação espiritual em todo o continente, chegando, no início do século XII – momento da sua máxima expansão –, ao impressionante número de 1200 casas. Esse trabalho foi sem dúvida determinante para o fim de questão das investiduras – e para muitos outros problemas com que se deparava a Igreja medieval.
A primeira grande lição de Cluny é que a Igreja produz padres, monges e bispos mais santos quando estes não são frutos de escolhas políticas, mas são eleitos de acordo com suas virtudes. Em muitos lugares e em diferentes épocas, o poder político tentou – e tenta – infiltrar-se na Igreja, submetendo-a às suas rédeas. Esta, no entanto, só é fiel quando serve ao Senhor e rompe seus “votos de vassalagem” com os senhores do mundo. Foi o que ensinaram os monges de Cluny – não sem muito trabalho e combate, é verdade. Afinal, mesmo durante o período em que o monge Hildebrando – futuro Papa Gregório VII – procurou desvincular a eleição do Papa de influências políticas, Henrique III – pai de Henrique IV, de que já se falou –, descontente com as escolhas dos cardeais, depôs três pontífices, em uma amostra clara de como as ingerências mundanas causavam dano à Igreja.
Na verdade, São Gregório VII só conseguiu a submissão de Henrique IV depois de convencer os seus “príncipes eleitores” – que sustentavam o seu poder – a ficarem do seu lado. Ou seja, o poder do Papa só foi efetivo porque suas palavras foram acolhidas por alguns indivíduos. Se, no abismo do século X, Deus enviasse à Igreja um Papa santo, isso pouco efeito concreto teria para solucionar o problema das investiduras, porque os apelos pontifícios certamente não seriam obedecidos. Por isso era necessário Cluny, para civilizar as pessoas, ensiná-las a estudar e meditar sobre a Verdade, de modo que, quando um bom Papa se sentasse no trono de Pedro, seus comandos fossem seguidos na Igreja.
O fato é que, após a peregrinação penitencial de Henrique IV, o imperador voltou a mostrar as suas garras, indicando que não se tinha convertido de verdade. Quando Gregório VII o excomungou novamente, os príncipes eleitores se puseram contra o Papa, que morreu exilado, em 1085.
A lição histórica de Cluny, no entanto, permanece. Da Igreja, não se deve esperar que deponha presidentes e monarcas, como fazia na Idade Média; mas sim, que cumpra a sua missão evangelizadora. Hoje, por exemplo, é urgente lembrar que existe, na Criação, uma estrutura da realidade, uma razão à qual todos os homens – não só os católicos – devem submeter-se. Infelizmente, tem-se substituído cada vez mais a noção de direito natural por uma “ditadura do relativismo”, já denunciada pelo Papa Bento XVI [4], na qual nada é reconhecido como certo e tudo pode ser manipulado ao bel-prazer das pessoas.
O fato de o Estado ser laico não impede esse trabalho profético da Igreja. O termo “Estado laico” significa, simplesmente, que quem deve mandar e decidir as coisas na sociedade civil são os cidadãos, não os Papas e bispos. Mesmo os membros da sociedade civil podem ser evangelizados e, uma vez convertidos, oferecer a sua contribuição para o bem comum e para a política.
Referências
Mt 22, 21
Petrus Damianus, Liber Gomorrhianus, in Documenta Catholica Omnia
Henri Daniel-Rops, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, São Paulo: Quadrante, 2011, p. 204
Cardeal Joseph Ratzinger, Homilia na Missa “pro Eligendo Romano Pontifice”, 18 de abril de 2005
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