Também a mim destes esperança!
Poderíamos abordar o evangelho deste domingo sob dois ângulos diferentes. Ou se enfatiza a atitude infinitamente generosa de Deus (o proprietário, na parábola) que não mede esforços para que sejamos salvos. Ou analisamos a aplicação moral que nos ensina a modificar o nosso “mau olhar”, a inveja (dos operários da primeira hora).
Vamos iniciar com o segundo ponto: a inveja. E, para iluminar o evangelho deste domingo, convido você a se recordar comigo da história de José do Egito, como é relatada no livro do Gênesis.
José do Egito e a inveja da graça
José era o mais amado dos filhos de Jacó. Seu pai não escondia esta predileção e mandou fazer para ele uma “túnica de mangas compridas” (Gen 37,3). Mas não somente isto, o próprio José de forma imprudente, ou talvez ingênua, partilhava candidamente com seus irmãos os dois sonhos, segundo os quais, sua família inteira, até mesmo seu pai e sua mãe, viriam um dia se inclinar diante dele.
Com estas atitudes, a inveja não tardou a envenenar o coração de seus irmãos. Os filhos de Jacó decidem então vender José como escravo e encobrir o seu desaparecimento com uma farsa. Arrancam-lhe a túnica inconfundível, mancham-na de sangue e inventam que o pequeno sonhador fora dilacerado por um animal feroz. Ao receber a notícia da morte de José, “Jacó rasgou as vestes de dor, vestiu-se de luto e chorou a morte do filho por muitos dias” (Gen 37, 34).
O episódio é emblemático e nos ajuda a compreender a natureza da inveja descrita em nossa parábola. Não se trata de uma inveja normal, que tem por objeto o irmão, mas de uma inveja muito mais mortífera: “a inveja da graça de Deus”.
É interessante notar que os irmãos não invejavam simplesmente a José. O que invejavam na verdade era o amor que o pai lhe concedera. Poderíamos, porém, como os operários de nossa parábola, argumentar que a única coisa que os irmãos desejavam era uma justiça distributiva e receber, também eles, uma túnica de mangas compridas, junto com um equitativo lote de amor. Mas, no caso da história de José, esta interpretação “benévola” se demonstra insustentável. Como é possível alegar que os irmãos maliciosos desejavam apenas o amor de seu pai, quando, com a farsa da morte de José, eles foram os primeiros a ferir o coração amoroso de Jacó?
Com seu crime, os filhos de Jacó não somente revelam toda a inveja de José, mas uma inveja que nasce da pura malícia: o desejo de anular o amor do pai (no caso de Deus, diríamos: anular o derramamento da graça de Deus).
Seria enganoso pensar que o que levou os irmãos a venderem José como escravo tenha sido o desejo de ser amado por Jacó. Eles infelizmente não queriam nada disso. É triste admiti-lo, mas o que eles desejavam, na verdade, é que Jacó simplesmente parasse de amar!
Mas baldados foram os seus esforços, pois quanto mais seus filhos e filhas tentavam consolá-lo, “ele recusava qualquer consolo, dizendo: ‘Em prantos descerei até meu filho no reino dos mortos’. Assim o chorava o pai” (Gen 37, 35).
Os filhos de Jacó são expressão emblemática do ódio contra Deus que habita o coração de quem “inveja a graça de Deus”; o coração do homem que deseja, de forma absurda, que Deus pare de amar.
A inveja segundo Santo Tomás de Aquino
Mas vamos analisar mais de perto a natureza da inveja.
Santo Tomás de Aquino, seguindo a esteira dos Santos Padres, descreve a inveja como sendo uma espécie de tristeza. Quando a pessoa se entristece por constatar o bem do outro, ela sofre de inveja.
No evangelho, o patrão diz aos empregados de primeira hora: “Acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja porque estou sendo bom?” (Mt 20, 15). A expressão “estás com inveja” é uma adaptação portuguesa, pois o original grego reza assim: “ou o teu olhar é malvado porque eu sou bom?”.
Olho mau (ὁ ὀφθαλμός πονηρός – ho ofthalmós ponerós) é uma expressão semítica. Trata-se daquele mesmo olhar que os irmãos de José pousaram sobre ele quando “tendo-o o visto de longe, antes que se aproximasse, tramaram a sua morte. Disseram uns aos outros: ‘Aí vem o sonhador!’” (Gen 37, 19-20).
Jesus nos recorda que um olhar assim só pode brotar do coração (cf. Mc 7, 21.22: “Pois é de dentro do coração humano que sai… o mau olhar”). Mas trata-se de um coração deformado por ser incapaz de se alegrar com a felicidade do outro.
Mas, como já dissemos, o que nos chama a atenção nesta parábola não é a simples inveja do irmão (invidia fratris), mas a inveja muito mais grave que, segundo Santo Tomás, constitui um dos tipos de pecado contra o Espírito Santo: a inveja da graça de Deus (invidia fraternæ gratiæ, cf. Super Sent., 2, 43). Do que se trata?
Que pecado é este que leva Jesus a dizer que “todo pecado e toda blasfêmia serão perdoados; mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada” (Mt 12, 31)? Se olharmos de perto o contexto em que Jesus pronuncia esta dura sentença, podemos notar que Nosso Senhor acabara de libertar um possesso que era surdo e mudo, com o dedo de Deus, com o poder do Espírito Santo. Graças iguais a esta eram uma demonstração clara da presença de Deus e, por isto, o povo começava a crer em Jesus.
Os fariseus, tomados pela “inveja da graça de Deus”, pela tristeza de verem a graça de Deus derramada sobre o povo, queriam impedir que as pessoas cressem em Jesus e então começaram a blasfemar dizendo que a ação do Espírito era do próprio Satanás.
Esta é uma atitude semelhante à dos irmãos de José que desejavam aniquilar o amor do pai: o fariseu, como os filhos de Jacó e como o empregado da parábola, se entristece com a graça distribuída generosamente por Deus. É este “mau olhar” condenado pelo proprietário da vinha, no evangelho, que constitui um pecado contra o Espírito Santo.
O que poderia impedir o próprio Deus de nos salvar e de perdoar os nossos pecados? Nós mesmos! Quando, por pura malícia, preferimos em nosso coração nos fechar à graça de Deus e aniquilá-la. Quem, ao contrário, não peca contra o Espírito Santo é aquele que se alegra por vê-la distribuída generosamente a seus irmãos.
Uma lição para os bons cristãos
Gostaria, finalmente, de alargar o nosso horizonte hermenêutico, recordando o contexto da perícope que nos foi proposta para a reflexão deste domingo.
Neste evangelho, estamos em pleno discurso “eclesiástico” de Jesus. Trata-se, portanto de um ensinamento dirigido primordialmente aos discípulos e não aos judeus.
No capítulo anterior, 19, Nosso Senhor acaba de responder a São Pedro que lhe declarara: “Nós deixamos tudo e te seguimos. Que haveremos de receber?”. Jesus responde prometendo a recompensa de vida eterna e conclui assim: “muitos que são primeiros serão últimos, e muitos que são últimos serão primeiros” (Mt 19,30).
É neste contexto imediato que nos é apresentada a parábola deste domingo, a qual Jesus irá concluir com uma frase quase idêntica: “os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 20,16).
Isto nos permite então interpretar esta parábola à luz do drama existencial daqueles que, como São Pedro, deixaram tudo para seguir Jesus e que, como os fariseus, se sentem tentados pela inveja da graça. De fato, para alguns cristãos, é bastante duro ver as portas do paraíso se abrirem de par em par aos que não tiveram que suportar “o peso do dia e o calor ardente”.
Podemos concluir, assim, que a mensagem central do evangelho deste domingo é a generosa misericórdia de Deus. Esta misericórdia, porém, não nos é apresentada como uma pequena recompensa egoística. Ela é um compromisso dramático. Ou aprendemos, com o proprietário da vinha, a ter um “olhar luminoso”, que sabe celebrar a salvação de Deus e a sua largueza. Ou seremos escravizados por aquele olhar infernal que se entristece por ver a graça derramada com prodigalidade.
Em extrema síntese poderíamos dizer que devemos ser “misericordiosos como o nosso Pai celeste é misericordioso” (Lc 6, 36). De fato, é difícil imaginar que no Reino dos céus possa entrar alguém que não se alegre com a conversão “da última hora” de um bom ladrão ou de uma Maria Madalena.
Qui Mariam absolvisti | Vós que absolvestes Maria Madalena |
Et latronem exaudisti, | E ouvistes a prece do bom ladrão, |
Mihi quoque spem dedisti. | Também a mim destes esperança! |
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