Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa
A referida pergunta procede e versa sobre um assunto a ser investigado. Mas deve-se dizer que, para analisar tal problema, é preciso logo de princípio fazer uma distinção entre o campo estrito da metafísica e outros tratados filosóficos. Sendo a metafísica o estudo do ser enquanto ser, separado das qualidades sensíveis e da quantidade (terceiro grau de abstração), não compete às ciências físicas imiscuir-se em seu terreno e querer aplicar aí seu método de investigação. Deus, Ato Puro, Ser Absoluto, Causa Primeira, nunca será objeto de investigação científica, se por ciência se entendem apenas as ciências empíricas. A legitimidade da metafísica consiste justamente em provar que as outras ciências são subalternas em relação a ela na medida em que suas conclusões e respostas não são exaustivas, mas, ao contrário, sempre se limitam àquilo que é contingente e não se explica por si mesmo e, por conseguinte, é dependente do Ser Necessário.
Como se sabe, há três graus de abstração. O primeiro grau deixa de lado as características particulares dos fatos e fenômenos, considerando as naturezas universais e as leis universais dos fenômenos físicos. Neste primeiro grau de abstração fundam-se as ciências experimentais. O segundo grau de abstração deixa de lado as propriedades físicas e sensíveis das coisas e nelas só lhe interessam a quantidade e o cálculo entre as quantidades. É a abstração própria da matemática. O terceiro grau de abstração deixa de lado as quantidades como propriedades físicas e sensíveis, considerando nas coisas apenas o que nelas há de primeiro, o mais fundamental, isto é, o ser.
O pensador tomista francês, Jean Daujat,
observa que cada um desses três graus de abstração tem sua maneira
própria de conceber e raciocinar e que se pode cair em graves confusões
se se passa de um a outro sem atenção. Daujat dá como exemplo a noção de
causalidade que não é absolutamente a mesma para o físico e para o
metafísico. Para o físico, a causalidade é uma regularidade na sucessão
dos fenômenos sensíveis: ele dirá que um fenômeno A é a causa de um
fenômeno B se fenômeno A é sempre acompanhado ou seguido pelo fenômeno
B. Para o metafísico, a causalidade é uma dependência na existência: ele
dirá que A é causa de B se o ser de B depende do ser de A ( Cf. Jean
Daujat, Y a-t-il une verité?, Paris, Pierre Téqui Éditeur, 2011).
Para resolver a questão que nos ocupa, a relação entre a metafísica de São Tomás e as ciências empíricas modernas, é útil ainda acrescentar outra consideração de Daujat atinente à pretensão do neopositivismo de recusar a legitimidade da física moderna, que não obteria um conhecimento objetivo do mundo mas se reduziria a um método matemático para organizar a ação do homem no mundo. Diz Daujat que o conhecimento das quantidades medidas é verdadeiro. E este conhecimento limitado ao quantitativo é importante, pois, sendo a quantidade o acidente fundamental das substâncias corpóreas e o sujeito de seus outros acidentes, o conhecimento quantitativo poderá fornecer as indicações para um conhecimento ontológico que os atinja em seu ser mesmo, de modo que o sábio pode passar de um conhecimento a outro sem dar-se conta (o. c. p. 150-151).
Portanto, como se vê, o questionamento da validade da metafísica tomista envolve, na verdade, o questionamento da ciência moderna. O cientificismo, inimigo da metafísica, não destrói apenas a filosofia primeira mas toda a ciência.
Contudo, cumpre dizer que as investigações filosóficas de Santo Tomás em outras áreas, como, por exemplo, na antropologia e na cosmologia, podem, eventualmente, oferecer alguma dificuldade ou exigir outras explicações, estimulando os estudiosos mais competentes a aprofundar suas pesquisas por meio de um diálogo fecundo com as diversas ciências contemporâneas. Aliás, o papa Leão XIII, na famosa encíclica Aeterni Patris, de 1879, em que recomenda um retorno ao estudo de Santo Tomás, diz que, se na antiga escolástica houver alguma coisa inconciliável com o avanço da ciência moderna, não seja tal ensinamento reproposto. A propósito de semelhante problema o respeitado professor de filosofia, Henrique Cláudio de Lima Vaz SJ, em seu auto-retrato filosófico, conta que em seu tempo de seminário havia uma interessante disciplina voltada justamente para esse escopo de investigar os pontos de contato entre a filosofia e a ciência moderna.
Da minha parte, posso dizer que, dirigindo os seminários da disciplina Síntese Filosófica, que visa precisamente a estabelecer um confronto entre a filosofia perene e as correntes modernas de pensamento, pude observar em um trabalho apresentado por um aluno que Santo Tomás, aplicando ao problema da união corpo e alma no homem a teoria do hilemorfismo, não só dá uma reposta muito mais satisfatória que o dualismo cartesiano, mas também se coaduna com as investigações mais recentes da neurociência, que tanta empolgação tem causado. Com efeito, embora rejeitando o emprego do conceito clássico de “alma” como princípio vital e forma substancial que assegura ao homem a sua unidade e seu único ato de ser, e apesar de um emprego impróprio do conceito de consciência em lugar de alma, vários neurocientistas, não obstante ressaibos de materialismo, querem dizer quase a mesma coisa que disse Santo Tomás na explicação do homem com base na unidade substancial entre corpo e alma. Se tiverem boa vontade, esses cientistas, estudando Santo Tomás, hão de concluir que o sistema nervoso superior não pode explicar cabalmente a consciência humana, mas é preciso admitir uma forma substancial.
Entretanto, não é apenas a obra de Santo Tomás de Aquino que se apresenta de uma atualidade espantosa, mas também sua vida santa e admirável constitui uma lição atualíssima. Tendo vivido no século XIII, em uma sociedade estamental, pertencente à alta nobreza, foi educado, como se sabe, por monges beneditinos. Naqueles tempos, a vida religiosa abraçada dentro de mosteiros (que eram feudos rendosos) ou nas aristocráticas congregações de cônegos regulares podia reverter em benefício e prestígio de toda estirpe. Por isso, a decisão de Santo Tomás de ingressar em uma ordem mendicante, a Ordem dos Pregadores, fundada por São Domingos Gusmão, a qual era ainda vista com certa desconfiança, foi um ato de virtude do nosso santo e frustrou interesses mesquinhos de alguns de seus familiares. Em nosso mundo de hoje, mais que nunca dominado pela ambição de bens materiais, a vida santa do Doutor Angélico, inteiramente dedicada à busca e ao ensino da sabedoria, deve ser meditada e imitada.
Muito mais poderia ser dito sobre santo Tomás. Que o seja por quem tem mais competência. Ficam aqui estas mal traçadas linhas à guisa de breve panegírico e como um testemunho de quem tenta abeberar-se nas fontes límpidas do Doutor Comum da Igreja para manter a integridade da fé. Não é à toa que a Igreja determina, no cânon 252 do Código de Direito Canônico, que os estudos teológicos sejam desenvolvidos à luz da doutrina de Santo Tomás ( S. Thoma praesertim magistro). Sem a luz do tomismo, toda a teologia, inclusive o magistério eclesiástico, perde seu rigor e precisão, reduzindo-se a um discurso livre em que cada um dirá o que quer. Não é à toa tampouco que o papa Leão XIII, querendo, nas pegadas de seu predecessor Pio IX, restaurar sociedade segundo princípios cristãos, viu que tal empresa era inútil sem a restauração da inteligência cristã e, por isso, escreveu a encíclica Aeterni Patris.
Anápolis, 10 de agosto de 2013.
Festa de São Lourenço, diácono e mártir.
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