Agora, em nome da “liberdade” das crianças, sacrificam-se também o rigor e o respeito pelos outros. Hoje, nos países mais ricos, filhos e filhas crescem segundo as regras de um modelo global que os torna, muito rapidamente, consumidores mais ativos e comprometidos do que os adultos.
A análise é do linguista italiano Raffaele Simone, professor da Università degli Studi Roma Tre, em artigo publicado no jornal La Repubblica.
Eis o texto.
Embora, nos Estados Unidos, sejam sempre mais numerosas as associações de pais que pedem o fim dos concursos de beleza infantis, em que fantochezinhos entre três e sete anos competem nas roupas e com gestos de vampiras, isso não é o suficiente para nos fazer esperar que as nossas crianças irão voltar a ser… crianças.
Em todos os países ocidentais, a criança já é, cada vez mais, um adulto encolhido, que se vê novamente como protagonista de um imenso catálogo de bens de consumo construído em torno dele. Ele dispõe de roupas superespecializadas, aparelhos eletrônicos, telefones celulares, microcarros, alimentação direcionada e sofisticadíssima, sem falar, naturalmente, daquelas que, na Itália, são chamadas de “atividades” (cursos de esportes dedicados, línguas, férias inteligentes etc.), que tornam a agenda de um pequeno menor de idade mais espessa do que a de um cirurgião cardíaco.
Dessa forma, a criança ocidental moderna assim perfilada apagou os limites de uma conquista: aquela que, muito recentemente, levou-a a existir. A criança como sujeito de si mesma nasceu, de fato, só em meados do século XIX, com o desenvolvimento de algumas disciplinas especializadas que lhe conferiram legitimidade e perfil: a psicologia infantil, a pediatria e a pedagogia no sentido moderno.
A isso deve ser acrescentado o efeito das lutas socialistas e humanitárias, nas quais a salvaguarda e o desenvolvimento da criança eram objetivos primários, e das reivindicações que, por décadas, foram feitas em torno da criança explorada e violada, como descrito a por Dickens em Oliver Twist e por Verga em Rosso Malpelo (um belíssimo livro de Philippe Ariès, História social da criança e da família, de 1960, reconstrói essa história com magníficos quadros narrativos).
Até então, a criança nada mais era do que um ser humano de pequeno porte e de força física reduzida e, além disso, não desprovido de malvadeza. Como consequência dessa imagem, o trabalho infantil na Europa foi praticado no Ocidente até a época moderna (e ainda existe em meio mundo). As crianças se alimentavam como os adultos (incluindo o álcool); a violência física era ingrediente comum de punição, também na escola (cinema e literatura relatam todos os detalhes dessas histórias: de Pinóquio, que dá uma ideia eloquente da imagem da infância em pleno século XIX italiano; ao filme de Lindsay Anderson, de 1968, que fala da violência pedagógica nas escolas inglesas; ao Senhor das Moscas, de William Golding, que retrata a crueldade infantil que se torna sistema político).
Só as classes ricas reconheciam uma diferença entre adultos e crianças, mesmo que, com estas últimas, os pais nem se preocupavam: a criança de família rica, confiada a uma babá desde o nascimento, encontrava só mais tarde e ocasionalmente a mãe verdadeira.
Esse processo de “criação da criança” tem o seu auge entre os anos 1960 e 1980. A psicologia do desenvolvimento e da educação (Dewey, Piaget e Bruner à frente), as teologias da libertação, o montessorismo com as pedagogias abertas, a pediatria “liberal” (à la Benjamin Spock; alguém se lembra dele?) e, naturalmente, a psicanálise a colocaram pouco a pouco no centro da cena como sujeito autônomo, a ser tratado não como um adulto em pequena escala, mas sim como um indivíduo com dinâmicas próprias, formas de inteligência, emotividade, sofrimentos e direitos.
Nem tudo é tranquilidade e alegria, no entanto, na criança à la moderne: Freud, que inventou a fórmula inquietante “a criança é o pai do homem”, repetidamente analisou “o seu narcisismo, a sua autossuficiência e inacessibilidade”, similares aos de “algumas feras”.
Além disso, a criação moderna da criança é uma conquista excepcional, que produziu como resultado uma atitude geral de “culto da criança”. Os efeitos disso se projetaram, depois, poderosamente sobre a vida cotidiana e, especialmente, sobre a escola. Em todo o Ocidente evoluído, não há hoje nenhum sistema de educação que não declare ter em seu centro a criança com os seus desejos, as suas aspirações, a sua inteligência e a sua “vivência”.
Mas, assim como muitas conquistas, isso também pode declinar em perigos. O primeiro deles, mais geral, é que não existe escola que seja mais psicologizada do que a ocidental (a italiano à frente): em nome da liberdade (motora, intelectual, volitiva…) da criança, podem-se sacrificar e adiar também o rigor, a ordem e o respeito pelos outros. Cada um de nós sabe citar exemplos em contrário, naturalmente, mas o espírito institucional da educação pode se resumir muitas vezes em slogans do tipo “nada deve se opor à liberdade da criança”.
O segundo efeito crítico é a transformação da dupla família-criança em uma espécie de aliança anti-instituição desestabilizadora. As famílias são, de fato, muitas vezes, as contrapartidas mais agressivas da escola e nem sempre lutam em nome da qualidade do resultado: em grande parte, a sua causa é a granítica defesa da liberdade da (sua própria) criança, mesmo contra a instituição e os seus propósitos.
É sobre esse campo que cresceu a figura atual da “criança global”, em que o trato mais inquietante é a imitação antecipada e insolente do adulto: consumismo afluente, polêmica contraposição aos mais velhos (que pode chegar ao escárnio dos adultos e dos idosos), relativa indiferença ao bem comum, antecipação generalizada (em meninos) das primeiras experiências sexuais e da droga, deslocamento da atenção da escola ao mundo exterior, e assim por diante, com efeitos que se acentuam na fase posterior, quando a “criança” se torna um “jovem”.
José Ortega y Gasset apontava para os primeiros indícios desse processo ainda nos anos 1920 (em La rebelión de las masas) e em um país então muito atrasado como a Espanha: “Nas gerações anteriores – escrevia –, a juventude vivia preocupada com a maturidade. Ela admirava os mais velhos, deles recebia as normas, esperava a sua aprovação e temia a sua raiva. [...] Hoje, a juventude parece ser dona indiscutível da situação, e todos os seus movimentos são saturados de domínio”.
Se esses eram os primórdios, hoje o fenômeno está nas estrelas e, em certo sentido, repete, em outro eixo, o que acontecia antes da modernidade: antes, a criança era um pequeno adulto a ser explorado; agora, voltou a ser um pequeno adulto, mas protagonista consumista e egocêntrico (com a ajuda dos pais).
Em outras palavras, a época em que a criança ocidental era verdadeiramente uma criança durou apenas do final dos anos 1970 ao final do século XX, pouco mais do que um relâmpago… Entre as tantas “reformas impossíveis” que se poderiam estudar para o futuro próximo (especialmente por parte das esquerdas), deveria constar também aquela de fazer novamente da nossa criança uma criança e de voltar a salvá-lo do terrível modelo no qual foi inserido à força.
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