segunda-feira, 24 de março de 2014

O Pão de mil sabores.

(Sb 16, 21)

Narra o livro do Êxodo que o povo de Israel, atravessando o deserto no século XVI a.C, sentiu fastio do alimento que Deus lhe dava, o maná, e revol­tou-se contra Moisés dizendo: "Privados de tudo, nossos olhos só vêem maná" (Ex11,6). - De fato o maná devia ser insípido, pois coincidia com a semente de coentro.
Ora por volta do século X a.C, o salmista escrevia: "Cada um comeu o pão dos anjos mandou-lhes .... em fartura" (SI 78, 25).
Mais adiante ainda no século I a.C, o autor do livro da Sabedoria escre­via: "Este sustento (o maná)... servia ao desejo de quem o tomasse, um pão de mil sabores ao gosto de todos" (Sb 16, 21).
Estes testemunhos, em aparente contradição, podem deixar o leitor perplexo.
Na verdade, pertencem a um gênero literário dito "midrasche", que con­siste em reler o passado à luz da fé. No caso citado pode-se dizer que o maná era realmente insípido, mas, numa releitura feita séculos mais tarde, o leitor vê nele o penhor da entrada na Terra Santa; foi o maná que deu forças aos israelitas para caminharem peto deserto durante quarenta anos. Então foi ali­mento maravilhoso... "de mil sabores".

Esse paradoxo literário da história de Israel não é fato isolado, mas repete-se na vida de muitos homens e mulheres até hoje. Quantas vezes não acontece que um evento infausto, visto anos depois de ocorrido, pareça altamente benéfico. - Já houve quem, vítima de um acidente, fraturasse uma perna ou outro membro e fosse obrigado à triste condição de repouso forçado durante certo tempo; a princípio, rebelou-se interiormente, reclamou da Pro­vidência Divina, mas aos poucos foi encontrando seu novo modo de vida; passou a ler um pouco mais, e, lendo, refletiu mais a fundo sobre o sentido da vida; finalmente resolveu deixar um teor de vida devassa para se entregar a um comportamento mais amadurecido e digno. Talvez cada um de nós possa descobrir algo de semelhante em sua vida; há males que se tornam benefíci­os ou, como diz a linguagem popular: "Deus escreve direito por linhas tortas". Quem só vê as linhas tortas, mas não as sabe ler, fica perplexo. Um Deus cuja Providência falhasse e pudesse ser acusada de injustiça, não seria Deus; Ele, por definição, é a Suma Perfeição.
Aliás a própria história da salvação começa com um paradoxo: o peca­do dos primeiros pais tornou-se "feliz culpa". Feliz culpa, porque foi ocasião de que nos fosse dado um Redentor, que outorgou à humanidade mais do que perdera pela culpa do primeiro Adão.
Possam estas considerações suscitar em todos os que sofrem, um voto de confiança na história; aceitem comer do maná insípido pois um dia gozarão do maná de mil sabores.

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