Mas em nenhum momento do Antigo Testamento, por mais profunda que seja a expectativa messiânica, se ousa afirmar a divindade do Messias esperado. Ele é um príncipe da linhagem de David, realizará acções que só Deus pode realizar, como salvar o Povo dos seus pecados; Ele realizará a obra de Deus, será o Seu “Servo” por excelência. É certo que, em perspectiva escatológica, chega a ser imaginado como uma figura celeste, um “Filho do Homem”, que aparece sobre as nuvens do Céu. Mas que o Messias seja a Encarnação do próprio Deus, é a surpresa reservada por Deus para os que acreditarem na ressurreição de Jesus Cristo. A divindade de Cristo continua a ser a surpresa inaudita da fé cristã, afirmação da humanização de Deus e da divinização do homem, novo capítulo da “nova e definitiva Aliança”. Em relação ao homem, Deus afirma-se mais pela proximidade do que pela distância; diz-nos que, vencido o pecado, há na profundidade do homem a capacidade de ser semelhante a Deus. Afinal Deus e o homem são da mesma família, o que já estava sugerido na narração da criação, quando se diz que Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança.
Os crentes do Antigo Testamento encontravam dois obstáculos, aparentemente intransponíveis, para ousarem, sequer, imaginar que um homem pudesse ser Deus: a infinita distância entre o homem e Deus, distância de natureza, acentuada irremediavelmente na história do pecado do homem; e a compreensão de Deus como uma única Pessoa. Só a revelação de Deus como comunidade de Pessoas, uno na natureza e trino nas pessoas, poderia permitir a ousadia de acreditar na Encarnação de uma das Pessoas divinas. A revelação cristã resolve estas duas dificuldades: Cristo liberta radicalmente o homem do pecado e Ele próprio nos revela o mistério da comunhão trinitária.
É por aí que começa São João ao falar de Cristo como Encarnação de Deus: “No princípio era o Verbo, o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus Tudo se fez por meio d’Ele” (Jo.1,1). Só depois de afirmar esta alteridade, como Pessoa, do Verbo eterno em relação a Deus, de Quem é a Palavra, o Evangelista podia afirmar: “E o Verbo fez-Se carne e habitou no meio de nós. E nós vimos a glória d’Ele, glória que lhe vem do Pai, como o Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14). O anúncio deste mistério é prévio a tudo o que se possa dizer sobre Jesus. É por isso que São João faz deste anúncio o prólogo do seu Evangelho. O cristianismo é uma coisa ou outra conforme se acredita ou não que Jesus Cristo é o Filho de Deus feito Homem e se toma à letra a própria confissão de Jesus: “Eu e o Pai somos um” (Jo. 10,30).
Esta realidade inaudita de um “Deus-Homem” muda radicalmente a fisionomia da religião. A ponte entre Deus e o homem está definitivamente feita, porque o homem não precisa de sair da sua humanidade para encontrar Deus, e reconhece em Deus o mais íntimo da sua vocação humana. A primeira grande alteração acontece na maneira de escutar a Palavra de Deus: é uma mudança radical na mediação profética. É o que nos diz a Carta aos Hebreus: “Deus, que muitas vezes e de muitos modos, falara antigamente a nossos pais pelos Profetas, nestes tempos, que são os últimos, falou-nos por Seu Filho” (Heb. 1,1-2). Em Jesus Cristo cessa a mediação profética, porque Deus nos fala directamente através do Filho feito Homem. A Palavra de Deus é, agora, a Palavra de Jesus Cristo. E n’Ele toda a Sua realidade, ensinamento e missão, é Palavra. Deus já não precisa de mediações simbólicas para revelar aos homens a Sua Palavra. Ele próprio, no Tabor, anunciou a nova etapa do diálogo do homem com Deus: “Este é o Meu Filho escutai-O” (Mt. 17,5). Jesus Cristo, Filho de Deus, revela-nos o mais profundo desígnio de Deus a nosso respeito: seremos Seus filhos e entraremos na comunhão de amor que Ele é. E isso aconteceu-nos, quando, pelo baptismo, nos unimos à Sua morte e ressurreição. A principal obrigação do homem em relação a Deus, que é glorificá-l’O, está garantida por Jesus Cristo, no sacrifício de louvor. Ao permitir-nos esta intimidade e esta verdade com Deus, Cristo revela ao homem o mais profundo do Seu coração. Só em Jesus Cristo o homem reconhece o seu mistério. Cristo revela o homem a si mesmo; Cristo humaniza o homem.
Num momento em que, num mundo globalizado, se fala na urgência do diálogo inter-religioso como caminho para a paz, os cristãos só se podem comprometer, de forma construtiva, nesse diálogo, se não esquecerem este carácter único da sua fé: a proximidade de Deus, em Jesus Cristo. Noutras religiões, encontramos o sentido da transcendência de Deus, da Sua santidade e bondade, Senhor e Juiz de todos os homens. Mas só o cristianismo nos torna Deus acessível, próximo, expresso na realidade humana do Homem Jesus Cristo. Ele tornou-se o único caminho por onde podemos chegar a Deus. É também a partir de Jesus Cristo que podemos entrar em diálogo com crentes de outras religiões, nossos irmãos. No que essas religiões significam de caminho para Deus, elas são expressão silenciosa de Jesus Cristo, o único caminho. Ao exprimir-se num Homem, Deus tocou no âmago de toda a história humana e do próprio Universo criado, no seio dos quais as “sementes do Verbo” anseiam pela sua manifestação plena. Foi assim que um grande Padre da Igreja, Santo Ireneu, designou os valores positivos de todas as religiões como caminhos para Deus: “sementes do Verbo”, Ele que Se fez carne, em Jesus Cristo.
Porque o homem é o centro do Universo, a Encarnação de Deus, em Jesus Cristo, é um passo decisivo para a transformação do Universo criado, em ordem à sua plenitude definitiva. Ele é uma força transformadora, a germinar no seio do cosmos, a anunciar a sua transformação. São João lembra que por esse Verbo eterno, que Se fez carne, todas as coisas foram feitas. Tudo será recapitulado n’Ele, como afirma o Concílio Vaticano II: “O Verbo de Deus, por Quem tudo foi feito, Ele próprio Se fez carne, para que, Homem perfeito, salve todos os homens e recapitule todas as coisas n’Ele” (G.S. n.º45).
A nossa fé em Jesus Cristo, Verbo de Deus Encarnado, compromete-nos com a evolução do Universo e o destino da criação. O drama do Universo é indissociável do drama do homem, e ambos encontram a resposta iluminadora na Cruz de Jesus Cristo. É este o ensinamento de Paulo aos cristãos de Roma: “Eu penso que os sofrimentos do tempo presente não se podem comparar à glória que se revelará em nós.
Porque a criação, em expectativa, aspira pela revelação dos filhos de Deus. Se ela foi submetida à vaidade (
) é com esperança de ser, também ela, liberta da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rom. 8,18-21). O cristão é chamado a encontrar Deus, em Jesus Cristo, também no âmago da criação, ela própria redimida por Jesus Cristo. Num Hino da Liturgia das Horas, a Igreja canta: “Porque Ele está connosco, enquanto o tempo é tempo, ninguém espere, para O encontrar, o fim dos dias. Abrindo os olhos, busquemos o Seu rosto e a Sua imagem. Busquemo-l’O na vida, sempre oculto, no íntimo do mundo, como um fogo”.
Acreditar em Jesus Cristo, Verbo encarnado, significa introduzir Deus em todas as dimensões da nossa vida: pessoais e íntimas, de relação com os outros numa história comum, nas nossas relações com o Universo, inseparável do destino do homem. Deus está próximo, passou a ser uma força contínua, na nossa vida e na nossa história.
Sé Patriarcal, 25 de Dezembro de 2006 JOSÉ, Cardeal-Patriarca
Homilia do Patriarca de Lisboa na Solenidade do Natal do Senhor
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