sexta-feira, 8 de julho de 2011

Deus não castiga?

“O mal de culpa consiste num operar; e o mal de pena num padecer”.


Santo Tomás de Aquino (De Malo, I, Art. 5, resp.)


Sidney Silveira


Lembro-me de que, há alguns anos, foi preciso corrigir a Apresentação encomendada para o primeiro volume da Questão Disputada Sobre o Mal editado pela Sétimo Selo, num trecho em que se fazia alusão a uma das muitas imprecisões (tecnicamente falando, heresias, digo hoje sem constrangimento) do erudito monge beneditino Estêvão Bettencourt [1], falecido há três anos. No caso, era a sua opinião de que o inferno seria, em verdade, não uma realidade ígnea onde são atormentados os réprobos, mas o simples afastamento de Deus ocasionado pelo pecado. Em palavras simples, o inferno seria essencialmente um estado, e não um lugar [2] no qual padecerão a pena eterna os demônios e os homens que morreram em impenitência final, privados da graça santificante, dado que não estavam entre os eleitos por presciência divina — quer dizer, entre os predestinados à salvação.


Ora, que os réprobos viverão a eternidade a retorcer-se, numa dor espiritual infinda, é uma conclusão fundamentada na Sagrada Escritura; mas dizer que ele não seja um castigo divino é um grande erro teológico — que, defendido em qualquer outra época anterior ao vendaval pós-conciliar vaticano-secundista, acarretaria imediatas sanções do Magistério da Igreja ao opiniático teólogo que a sustentasse. Afirmo isto porque, se escavarmos bem as premissas implicadas neste erro grave contra a fé, veremos que, no fundo, está a pressuposição (em geral bastante maliciosa, embora pintada nas róseas cores das “boas intenções”) de que Deus não castiga ninguém; o homem é quem se castiga a si mesmo com o pecado.


O corolário teológico da verdade de fé claramente expressa na Sagrada Escritura —“Apartai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o demônio e seus anjos”, (Mt. XXV, 41) —, e defendido por dois mil anos de Magistério, é bem outro: Deus castiga. E castiga porque é justíssimo e sapientíssimo. Vejamos primeiramente o que ensina Santo Tomás no Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo sobre o chamado “mal de pena”:


“Duas coisas devem considerar-se na pena, a saber: a razão de mal, na medida em que é privação de algum bem, e a razão de bem, na medida em que é justa e ordenada. Alguns antigos, considerando a pena tão-somente sob o aspecto de ser um defeito e um mal, disseram que as penas não procedem de Deus, erro em que parece ter caído [até] Cícero, como é evidente em seu livro De officiis (II, 2); tais homens negaram a Providência de Deus a respeito dos atos humanos. Daí afirmarem que a ordem da pena (...) não existe por Providência Divina, mas apenas pela justiça do homem que a inflige, e que o defeito que está na pena não é ordenado por Deus, mas acontece necessariamente por causas segundas, pois sustentavam esses homens que Deus produziu toda a realidade no ser como um agente que produz por necessidade natural (...). Mas esta posição é errônea, como ficou evidente no Livro das Sentenças (I, d39), onde se mostra que a Providência Divina se estende a todas as coisas.


“Por esta razão é preciso dizer que as penas procedem de Deus, mas de nenhum modo procedem d’Ele as culpas, embora a umas e a outras se chamem males. (...) A pena (...) não tem razão de mal ou de defeito porque procede do agente, já que as penas se infligem por uma ação ordenada do agente, mas tem razão de defeito e de mal apenas no sujeito que a padece e é privado do bem por uma ação justa, e daí que Deus é o autor das penas, mas de modo diverso para penas diversas. Com efeito, umas penas são de dano, como a subtração da graça e outras semelhantes; e Deus é causa dessas penas”. [in II, Sent., d37, art.2, resp.]


A frase seguinte desse texto de Santo Tomás eu prefiro destacá-la fora da citação, e o porquê já direi. Afirma o Aquinate: “(...) Deus é causa das penas não como quem obra, mas mais propriamente não obrando, pois do fato de que Deus não outorgue a graça já se segue a privação da graça”. Quer dizer: Deus opera a pena simplesmente não outorgando a graça ao pecador que se perde, no momento da morte deste. Mas tal aparente “inação” é fruto de um ato positivo da vontade divina, e a importância deste esclarecimento é porque alguém poderia imaginar o seguinte: ao infligir esse tipo de pena sem obrar, Deus nada teria a ver com o inferno.


Pois bem. Na Suma Contra os Gentios (III, cap. CXLV), num trecho em que fala da justeza absoluta da lei divina, o Aquinate ensina de forma insofismável: “Os que pecam contra Deus não somente devem ser punidos pelo afastamento da bem-aventurança, como também pela experiência de algum mal. (...) Donde na Divina Escritura infligir-se aos pecados não apenas a exclusão da glória (exclusionem a gloria), como também a aflição provocada por outras coisas. Assim (...) ‘[Deus] fará chover sobre os pecadores brasas de fogo; enxofre e vento flamejante serão a porção do seu cálice’ (Sl. 10,7). Por esses argumentos [ou seja: os vários arrolados anteriormente, e não somente os destacados por ora no blog] afasta-se a opinião [herética] de Algazel, que afirmava que os pecadores só serão afligidos pela perda do fim último[3].


A proposição de D. Estêvão de que o inferno é apenas um estado, e não um castigo infligido por Deus (o qual tem os demônios atormentadores como instrumentos da Providência Divina) parte de uma fonte principal: a perda da verdadeira noção de sobrenatural, que o levou a enfatizar apenas as conseqüências naturais do pecado na alma (e no corpo) do pecador, e equivocamente projetá-las no que — ao seu ver — seriam as penas do inferno. Ora, haver penas que são fruto direto do pecado, e muitas vezes ainda nesta vida se refletem no corpo, é algo que mesmo Santo Tomás jamais negou. (Ex.: um irado sente o sangue esquentar e a pressão subir; o guloso sente o corpo pesar; o luxurioso, a imaginação desgovernar-se; etc.). Mas no caso da pena do inferno se trata propriamente de uma pena sobrenatural, e não de uma conseqüência devida a processos naturais, e muito menos de algo que decorra automaticamente do pecado, sem nenhuma participação da Providência Divina, que a tudo abarca.


Em suma, reiteremos: de acordo com a doutrina católica, a pena do inferno é um castigo sobrenatural que se insere no plano da Divina Providência — e tem os demônios atormentadores como instrumentos da Justiça de Deus.


___________
[1] Além do naturalismo que permeia um sem-número de teses teológicas de D. Estêvão, uma das proposições difundidas em vários de seus textos na conhecida publicação Pergunte e Responderemos é a do poligenismo (ou seja: a opinião de que não houve Adão e Eva, mas um infindável número de “protoparentes”, o que simplesmente joga por terra o dogma do Pecado Original).


[2] D. Estêvão chama de “infantil” a visão do Inferno de Irmã Lúcia, e de forma bastante constrangedora para o fiel tradicional. Mas há bem mais: no Curso sobre Problemas de Fé e Moral, da Escola Mater Ecclesiæ (pág. 137), D. Estêvão, depois de colocar num mesmo plano a visão de Dante e a de Irmã Lúcia — o que já diz muito do seu modernismo —, afirma com indisfarçável ironia que “o inferno não é um tanque de enxofre fumegante, com diabinhos asquerosos a atormentar os réprobos. O inferno é um estado de alma em que a criatura humana se projeta caso morra num estado de aversão a Deus ou em pecado grave. Deus respeita a opção da criatura que se autocondena a si mesma” (grifos nossos!). Fecho aqui as aspas para dizer: são tantos os erros teológicos graves contra a fé implicados numa tão curta proposição, que deixarei para enumerá-los noutra oportunidade. Prossigamos com D. Estevão, na pág. 140 da mesma obra: “A propósito, costuma-se perguntar o que julgar da famosa visão do inferno com que foi agraciada Lúcia, a vidente de Fátima: [respondamos] é visão adequada ao entendimento das crianças (...)”. Pois bem, contraponhamos isto ao que diz o Aquinate na Suma Teológica (I, q. 64, art. 4, resp.), seguindo de perto o Magistério, que ensina categoricamente que os demônios atormentam os condenados no inferno: “Alguns [demônios] estão agora [antes do Juízo] no inferno atormentando aqueles que induziram ao mal”. Ora, entre o Doutor Comum da Igreja e D. Estêvão, não me perguntem com quem devemos ficar...


[3] Ou seja, é a mesma heresia defendida por D. Estêvão na obra supracitada (em nota na pág. 137), quando diz: “...[o inferno] se caracteriza, em grau máximo (...) pela privação de Deus”. O monge beneditino, nesta passagem, parece desconhecer que a visão beatífica da essência divina (felicidade sobrenatural absolutamente gratuita) também não é prerrogativa das almas que estão no Limbo, as quais ainda assim têm uma felicidade natural. Ah, lembrei que a C.T.I. pôs o Limbo no ‘limbo”...


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