por
São Boaventura de Bagnórea
Cardeal, Confessor
« Doutor Seráfico »
(../../1221 - 15/07/1274)
1. A respeito da glória celeste, deve-se, em resumo, admitir o seguinte: Há na glória o prêmio substancial, consubstancial e acidental. O prêmio substancial consiste na visão, fruição e posse do único bem supremo, que é Deus, a quem os bem-aventurados haverão de ver face a face, isto é, abertamente e sem véu; e haverão de fruí-lo avidamente e com deleite, e possuí-lo-ão por toda a eternidade, a fim de que se realize o que diz são Bernardo, isto é, que «Deus será a plenitude da luz para a inteligência, a abundância da paz para a vontade e a continuidade da eternidade para a memória». — O prêmio consubstancial consiste na glória do corpo, que é chamada da segunda estola, e que, ao ver vestida, faz com que a alma tenda mais perfeitamente «para o mais alto do céu». Esta estola consiste em quatro dotes do corpo, a saber: a claridade, a subtilidade, a agilidade e a impassibilidade, que se possuirão em maior ou menor quantidade, conforme o maior ou menor grau de caridade que antes se teve. - O prêmio acidental, enfim, consiste em um certo ornamento especial que se acrescenta, chamado auréola, e o que, segundo a sentença dos doutores, corresponde a três classes de obras, a saber: o martírio, a pregação e a continência virginal. Mas em todos estes prêmios conservar-se-á o grau e a distinção exigidos pela diferença de méritos.
2. O que acima se disse explica-se da seguinte maneira: o primeiro Principio, pelo fato de ser primeiro, possui a unidade, a verdade e a bondade supremas, que é o mesmo que atribuir a ele, em sumo grau, o poder, a sabedoria, a clemência e a justiça. Mas é conveniente que estes atributos invisíveis de Deus se manifestem através da obras, e por isto Deus, dando início a este mundo sensível, o criou, governa, repara, recompensa e consuma de tal modo que na criação se manifesta seu poder supremo; no governo, sua sabedoria; na reparação, sua clemência; e na retribuição, a consumação de sua justiça. Para que se manifestasse o poder, criou tudo do nada, para seu louvor, glória e honra, fazendo algumas coisas próximas ao nada, como a matéria corporal; outras próximas a si, como as substancias espirituais; e uniu ao mesmo tempo ambas estas coisas, isto é a alma racional e a matéria corporal, em um só homem, na unidade da natureza e da pessoa. Para que se manifestasse a sabedoria, ele governa a todas as coisas previdente e ordenadamente. De fato, rege por si mesmo o que há de mais elevado no homem, que é a mente, à qual esclarece; e o que há de mais ínfimo, o corpo, através do livre-arbítrio da vontade, para que assim o corpo e as coisas corpóreas, quanto ao governo, estejam sujeitos ao espírito, e o espírito a Deus. — Para que se manifeste a clemência, reparou o homem caído, assumindo a natureza do homem, aceitando suas penas, e sofrendo enfim a pena de morte, para que assim a suma misericórdia ficasse com que o sumamente misericordioso se assemelhasse ao mísero, para alivio da miséria não só na dignidade da natureza original, mas também nos defeitos da natureza constituída na miséria. - Enfim, para que se manifeste a justiça, retribui a cada um conforme a exigência dos méritos, e nesta retribuição não só castiga os maus com a pena, mas também premia os justos com a glória eterna. Isto é exigido pela retribuição justa, a reparação gratuita, o governo ordenado e a criação poderosa, sendo todos eles consumados no fim dos tempos.
3. Em primeiro lugar, pois, o prêmio de todos os justos deve verificar-se segundo o modo exigido pela justa retribuição e também pela criação poderosa; e a criação divina colocou a alma racional próxima a Deus, capaz de Deus, isto é, capaz em virtude da imagem impressa da Santíssima Trindade, à qual, nos justos, toda a alma do homem serviu, conservando a integridade da imagem. Devido a isto, por ninguém inferior a Deus a alma humana pode ser premiada e satisfeita, e nem ser repleta sua capacidade, motivo pelo qual no prêmio lhe é dada a deiformidade da glória que, tornando-a conforme a Deus, permite-lhe ver claramente a Deus pela inteligência, amá-lo plenamente pela vontade, e retê-lo para sempre pela memória; para que assim a alma toda viva, seja toda enriquecida em suas três potências, configure-se toda a Deus, toda a ele se una, toda nele descanse, encontrando nele, como em todo o bem, a paz, a luz e a plenitude eterna, pela qual, estabelecida « no estado que é perfeito pela reunião de todos os bens », e vivendo a vida eterna, seja chamada de bem-aventurada e gloriosa.
4. Além disso, aquela retribuição deve realizar-se não só segundo, as exigências da retribuição justa e da criação poderosa, mas também do governo ordenado. E Deus na criação uniu o corpo à alma e os ligou por uma inclinação natural e mútua; mas quanto ao governo submeteu o corpo à alma e nesta vida terrena fez com que a alma se condescendesse do corpo e cuidasse de seu governo para exercitá-lo no merecimento; nem a inclinação natural sofre que a alma seja plenamente bem-aventurada, se não se lhe restituir o corpo, pois possui uma inclinação natural inserida em si para reassumi-lo; nem o regime do governo sofre que o corpo seja restituído à alma bem-aventurada a não ser de todo conforme e sujeito a ela, na medida em que é possível ao corpo conformar-se com o espírito. Como, pois, a alma está esclarecida pela visão da luz eterna, deve, por isto mesmo reverberar em seu corpo a máxima claridade da luz. E como pelo amor do Espírito supremo a alma se tornou sumamente espiritual, deve também possuir no corpo a subtilidade e a espiritualidade correspondente. E como pela posse da eternidade se tornou totalmente impassível, deve haver também em seu corpo, por dentro e por fora, a impassibilidade sob todas as formas. E como por todas estas coisas a alma está de todo disposta a tender para Deus, deve haver no corpo glorioso a suma agilidade. E como, pois, por estas quatro propriedades o corpo torna-se conforme à alma, e a ela sujeito, por isso diz-se que está dotado principalmente por estas quatro, em virtude das quais pode seguir a alma e ser colocado nas alturas do céu, que é a habitação própria dos bem-aventurados. Por estas quatro propriedades assemelha-se o corpo do homem aos corpos celestes, pois por elas, como por graus de distância. o corpo celeste dista dos quatro elementos, e assim os quatro dotes dos corpos tornam o corpo perfeito em si, disposto para a morada do céu e conforme ao Espírito bem-aventurado, pelo qual desde Deus, sua cabeça, até as franjas dos vestimentos, que é o corpo, deriva, na medida do possível a plenitude da doçura e a embriague da bem-aventurança.
5. Enfim, os prêmios devem ser concedidos segundo as exigências da justa retribuição, da criação poderosa, do governo ordenado do mundo e de Cristo são diversos os carismas da graça, não só quanto aos dons interiores, mas também quanto aos ministérios exteriores, não só quanto aos hábitos, mas também quanto aos estados; não só quanto à perfeição da caridade, mas também quanto à beleza e o esplendor na atividade corporal. Por isso, a alguns membros deve-se não só a estola da alma com seus três dons, e a estola do corpo com seus quatro dons, mas também uma certa excelência de esplendor e de gozo, devido à grandeza da perfeição e da formosura alcançada na prática da virtude. Pois bem, são três os gêneros de ação especialmente perfeitos, formosos e harmoniosos, em harmonia especial com as três potências da alma: segundo a potência racional, a pregação da verdade que leva os demais à salvação; segundo a concupiscível, o afastamento perfeito de toda concupiscência pela integridade perpétua da continência virginal; segundo o irascível, o sofrimento da morte pela honra de Cristo. Daí que nestes três gêneros de justos, a saber: os pregadores, as virgens e os mártires, deve haver aquela excelência do prêmio acidental, que se chama auréola, a qual se refere à formosura não só da alma, mas também do corpo, já que se não dá apenas com relação à vontade, mas também com relação à ação exterior, tendo como base o mérito e o prêmio da caridade, que consiste nos sete dotes (três do corpo e quatro da alma), nos quais está contida a consumação, a integridade e a plenitude de todos os bens referentes à realização da glória.
6. Quais porém e quantos sejam estes bens, não o descreverão as minhas palavras, e sim as de Santo Anselmo. Diz ele no fim do Proslógio: « Desperta, de uma vez, ó minha alma, levanta toda a tua mente e medita quanto podes, qual e quão grande será este bem. Com efeito, se cada um dos bens causa deleite, reflete com atenção quão deleitável será aquele bem que encerra o encanto de todos os bens, não o encanto que experimentamos nas coisas criadas, mas outro tão diferente, quanto o criador difere da criatura. Se, pois, é boa a vida criada, quão boa deve ser a vida criadora? Se a saúde feita é boa, como não o será a saúde que fez toda a saúde? Se é agradável a sabedoria adquirida no conhecimento das coisas criadas, quão agradável não deve ser a sabedoria que criou tudo do nada? Enfim, se são muitos e grandes os deleites que se encerram nas coisas deleitáveis, qual e quão grande será o deleite naquele que fez tais coisas? »
7. « Quem gozará deste bem? o que será para ele e o que não será? É certo que será o que quiser e não será o que não quiser. Pois ai haverá bens do corpo e da alma, os quais nem os olho, viram, nem os ouvidas ouviram, nem o coração ao homem jamais imaginou. Por que, pois ó homúnculo, vagueias entre tantas coisas, procurando bens para tua alma e teu corpo? Ama o único bem no qual se encontram todos os bens, e isto é suficiente. Anela pelo simples bem que é todo o bem, e isto basta. Mas o que amas, minha carne? Que desejas, minha alma? Ali se encontra tudo quanto amais, tudo quanto desejais. Se causa deleite a formosura: os justos fulgirão como o sol. Se a agilidade, a fortaleza, a liberdade do corpo, sem nada que lhe possa estorvar: serão semelhantes aos anjos de Deus, pois é semeado o corpo animal, e surge o corpo espiritual pelo poder divino, não pela natureza. Se a vida longa e saudável, está ali a sã eternidade e a sanidade eterna, pois 0s justos vivem para sempre, e a salvação dos justos vem do Senhor. Se a saciedade: serão saciados guando aparecer a glória de Deus. Se inebriar-se; serão inebriados pela abundância da casa de Deus. Se a melodia, ali os coros dos anjos cantam sem cessar os louvores de Deus. Se qualquer prazer puro, não imundo: saciá-los-as na torrente de tuas delicias, ó Deus. Se a sabedoria, a própria sabedoria divina haverá de manifestar-se a eles. Se a amizade, amarão a Deus mais que a si mesmos, e Deus os amará mais do que eles a si mesmos, porque eles amam a Deus e a si e ao próximo por Deus, enquanto Deus ama a si e a eles por si mesmo. Se a concórdia, terão todos uma só vontade, que ser-lhes-á nenhuma outra que a vontade de Deus. Se o poder, poderão ludo com sua vontade, assim como Deus com a sua; pois assim como Deus poderá por si mesmo o que quiser, assim eles poderão por Deus o que quiserem, e assim como eles não haverão de querer a não ser o que ele quiser, assim também ele quererá o que eles quiserem; e o que ele quiser não poderá deixar de acontecer. Se a honra e as riquezas, Deus constituirá senhores sobre muitas coisas a seus servos bons e fiéis e mais ainda, os chamará e serão filhos de Deus e deuses, e onde estiver o seu Filho, lá estarão eles, quais herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo. Se a verdadeira segurança, com tanta certeza estarão certos de nunca e de nenhuma maneira perder estes bens, ou melhor, este bem, como estarão certos que não o perderão por sua própria vontade, nem pela vontade de Deus, que os ama, nem algo mais poderoso que Deus poderá separá-los de Deus contra a vontade deles ».
8. « Qual e quão grande será o gozo, onde é tal e tão grande o bem? Coração humano, coração indigente, coração que conheces o infortúnio, e que talvez te sentes submergido no infortúnio, quanto te alegrarias se tivesses tudo isto em abundância? Pergunta a teu interior, se pode caber nele a alegria de tão grande felicidade? Em verdade, se algum outro, a quem amasses como a ti mesmo, possuísse igual felicidade, duplicar-se-ia o teu gozo, pois que não menos te alegrarias por ele que por ti mesmo. E se dois, ou três ou muitos também a possuíssem, por cada um deles te alegrarias na mesma medida que por ti mesmo, se amasses a cada um deles como a ti mesmo. Assim, pois, naquela caridade perfeita de, tão inumeráveis anjos e homens bem-aventurados, onde ninguém ama a outrem menos do que a si mesmo, cada um não se alegrará pela felicidade do outro de modo diferente que pela sua própria felicidade. Se pois, o coração humano, por causa da grandeza de seu bem, já nem bem consegue abarcar a própria alegria, como será capaz de tantas e tão grandes alegrias dos outros? É certo também que na medida em que alguém ama a outrem, alegra-se também com o bem dele; ora como naquela felicidade perfeita cada um sem comparação amará mais a Deus do que a si mesmo e a todos os demais consigo, assim também sem comparação gozará muito mais da felicidade de Deus que da própria e da dos outros que com ele estão. Mas se amam a Deus com todo o coração, com toda a mente e com toda a alma de tal maneira que, não obstante, todo o coração, toda a mente e toda a alma não sejam suficientes para a grandeza do amor, então haverão de alegrar-se de todo o coração, de toda a mente e de toda a alma, de tal maneira que todo o coração, toda a mente e toda a alma não serão suficientes para a plenitude do amor».
9. « Todavia, Senhor, ainda não disse ou pensei quanto gozarão estes teus bem-aventurados. Certo, tanto gozarão, quanto amarem, e tanto amarão, quanto conhecerem. Mas quanto te conhecerão e te amarão? Em verdade, nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem o coração Humano jamais atingiu nesta vida, quanto os santos haverão de conhecer-te e de amar-te na outra vida. — Suplico-te, pois, ó Deus, que te conheça e te ame, para poder gozar de ti; e se não o posso plenamente nesta vida, que pelo menos cresça eu dia a dia, até chegar á perfeição; cresça aqui em mim o teu conhecimento, que lá se torne pleno, cresça aqui o teu amor, que lá se torne perfeito, a fim de que, aqui, a minha alegria seja grande na esperança, e lá seja plena na realidade. Senhor, tu mandas por teu Filho, e ainda aconselhas que se peça, e prometes atender ao pedido para que nossa alegria seja plena. Deus veraz, peço-te que consiga eu que minha alegria seja plena. Peço-te, Senhor, que pelo nosso admirável Conselheiro aconselhes; que eu consiga o que prometes pela Verdade, para que minha alegria seja plena. Entrementes, que minha mente pense nesta alegria, fale dela minha língua, ame-a meu coração, proclame-a minha boca, tenha fome dela minha alma, tenha sede dela minha carne, deseje-a todo o meu ser, até que entre na alegria do meu Senhor, que é o Deus uno e trino, bendito pelos séculos dos séculos. Amém!
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