Foi um momento de expectativa extraordinária pelas grandes coisas que deviam acontecer. Os concílios anteriores tinham sido quase sempre convocados para uma questão concreta à qual deviam responder; desta vez, não havia um problema particular a resolver. Mas, por isso mesmo, pairava no ar um sentido de expectativa geral: o cristianismo, que construíra e plasmara o mundo ocidental, parecia perder cada vez mais a sua força eficaz. Mostrava-se cansado e parecia que o futuro fosse determinado por outros poderes espirituais. Esta percepção do cristianismo ter perdido o presente e da tarefa que daí derivava estava bem resumida pela palavra «actualização»: o cristianismo deve estar no presente para poder dar forma ao futuro. Para que pudesse voltar a ser uma força que modela o porvir, João XXIII convocara o Concílio sem lhe indicar problemas concretos ou programas. Foi esta a grandeza e ao mesmo tempo a dificuldade da tarefa que se apresentava à assembleia eclesial.
Obviamente, cada um dos episcopados aproximou-se do grande acontecimento com ideias diferentes. Alguns chegaram com uma atitude mais de expectativa em relação ao programa que devia ser desenvolvido. Foi o episcopado do centro da Europa – Bélgica, França e Alemanha – que se mostrou mais decidido nas ideias. Embora a ênfase no pormenor se desse sem dúvida a aspectos diversos, contudo havia algumas prioridades comuns. Um tema fundamental era a eclesiologia, que devia ser aprofundada sob os pontos de vista da história da salvação, trinitário e sacramental; a isto vinha juntar-se a exigência de completar a doutrina do primado do Concílio Vaticano I através duma valorização do ministério episcopal. Um tema importante para os episcopados do centro da Europa era a renovação litúrgica, que Pio XII já tinha começado a realizar. Outro ponto central posto em realce, especialmente pelo episcopado alemão, era o ecumenismo: o facto de terem suportado juntos a perseguição da parte do nazismo aproximara muito os cristãos protestantes e católicos; agora isto devia ser compreendido e levado por diante a nível de toda a Igreja. A isto acrescentava-se o ciclo temático Revelação-Escritura-Tradição-Magistério. Entre os franceses, foi sobressaindo cada vez mais o tema da relação entre a Igreja e o mundo moderno, isto é, o trabalho sobre o chamado «Esquema XIII», do qual nasceu depois a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo. Atingia-se aqui o ponto da verdadeira expectativa suscitada pelo Concílio. A Igreja, que ainda na época barroca tinha em sentido lato plasmado o mundo, a partir do século XIX entrou de modo cada vez mais evidente numa relação negativa com a era moderna então plenamente iniciada. As coisas deviam continuar assim? Não podia a Igreja cumprir um passo positivo nos tempos novos? Por detrás da vaga expressão «mundo de hoje», encontra-se a questão da relação com a era moderna; para a esclarecer, teria sido necessário definir melhor o que era essencial e constitutivo da era moderna. Isto não foi conseguido no «Esquema XIII». Embora a Constituição pastoral exprima muitas elementos importantes para a compreensão do «mundo» e dê contribuições relevantes sobre a questão da ética cristã, no referido ponto não conseguiu oferecer um esclarecimento substancial.
Inesperadamente, o encontro com os grandes temas da era moderna não se dá na grande Constituição pastoral, mas em dois documentos menores, cuja importância só pouco a pouco se foi manifestando com a recepção do Concílio. Trata-se antes de tudo da Declaração sobre a liberdade religiosa, pedida e preparada com grande solicitude sobretudo pelo episcopado americano. A doutrina da tolerância, tal como fora pormenorizadamente elaborada por Pio XII, já não se mostrava suficiente face à evolução do pensamento filosófico e do modo se concebia como o Estado moderno. Tratava-se da liberdade de escolher e praticar a religião e também da liberdade de mudar de religião, enquanto direitos fundamentais na liberdade do homem. Pelas suas razões mais íntimas, tal concepção não podia ser alheia à fé cristã, que entrara no mundo com a pretensão de que o Estado não poderia decidir acerca da verdade nem exigir qualquer tipo de culto. A fé cristã reivindicava a liberdade para a convicção religiosa e a sua prática no culto, sem com isto violar o direito do Estado no seu próprio ordenamento: os cristãos rezavam pelo imperador, mas não o adoravam. Sob este ponto de vista, pode-se afirmar que o cristianismo, com o seu nascimento, trouxe ao mundo o princípio da liberdade de religião. Todavia a interpretação deste direito à liberdade no contexto do pensamento moderno ainda era difícil, porque podia parecer que a versão moderna da liberdade de religião pressupusesse a inacessibilidade da verdade ao homem e, consequentemente, deslocasse a religião do seu fundamento para a esfera do subjectivo. Certamente foi providencial que, treze anos depois da conclusão do Concílio, tivesse chegado o Papa João Paulo II de um país onde a liberdade de religião era contestada pelo marxismo, ou seja, a partir duma forma particular de filosofia estatal moderna. O Papa vinha quase duma situação que se parecia com a da Igreja antiga, de modo que se tornou de novo visível o íntimo ordenamento da fé ao tema da liberdade, sobretudo a liberdade de religião e de culto.
O segundo documento, que se havia de revelar depois importante para o encontro da Igreja com a era moderna, nasceu quase por acaso e cresceu com sucessivos estratos. Refiro-me à declaração Nostra aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs. Inicialmente havia a intenção de preparar uma declaração sobre as relações entre a Igreja e o judaísmo – um texto que se tornou intrinsecamente necessário depois dos horrores do Holocausto (shoah). Os Padres conciliares dos países árabes não se opuseram a tal texto, mas explicaram que se se queria falar do judaísmo, então era preciso dedicar também algumas palavras ao islamismo. Quanta razão tivessem a este respeito, só pouco a pouco o fomos compreendendo no ocidente. Por fim cresceu a intuição de que era justo falar também doutras duas grandes religiões – o hinduísmo e o budismo – bem como do tema da religião em geral. A isto se juntou depois espontaneamente uma breve instrução relativa ao diálogo e à colaboração com as religiões, cujos valores espirituais, morais e socioculturais deviam ser reconhecidos, conservados e promovidos (cf. n. 2). Assim, num documento específico e extraordinariamente denso, inaugurou-se um tema cuja importância na época ainda não era previsível. Vão-se tornando cada vez mais evidentes tanto a tarefa que o mesmo implica como a fadiga ainda necessária para tudo distinguir, esclarecer e compreender. No processo de recepção activa, foi pouco a pouco surgindo também uma debilidade deste texto em si extraordinário: só fala da religião na sua feição positiva e ignora as formas doentias e falsificadas de religião, que têm, do ponto de vista histórico e teológico um vasto alcance; por isso, desde o início, a fé cristã foi muito crítica em relação à religião, tanto no próprio seio como no mundo exterior.
Se, ao início do Concílio, tinham prevalecido os episcopados do centro da Europa com os seus teólogos, nas sucessivas fases conciliares o leque do trabalho e da responsabilidade comuns foi-se alargando cada vez mais. Os bispos reconheciam-se aprendizes na escola do Espírito Santo e na escola da colaboração recíproca, mas foi precisamente assim que se reconheceram servos da Palavra de Deus que vivem e trabalham na fé. Os Padres conciliares não podiam nem queriam criar uma Igreja nova, diversa. Não tinham o mandato nem o encargo para o fazer: eram Padres do Concílio com uma voz e um direito de decisão só enquanto bispos, quer dizer em virtude do sacramento e na Igreja sacramental. Então não podiam nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova, mas compreendê-las a ambas de modo mais profundo e, consequentemente, «renová-las» de verdade. Por isso, uma hermenêutica da ruptura é absurda, contrária ao espírito e à vontade dos Padres conciliares.
No cardeal Frings, tive um «pai» que viveu de modo exemplar este espírito do Concílio. Era um homem de significativa abertura e grandeza, mas sabia também que só a fé guia para se fazer ao largo, para aquele horizonte amplo que resta impedido ao espírito positivista. É esta fé que queria servir com o mandato recebido através do sacramento da ordenação episcopal. Não posso deixar de lhe estar sempre grato por me ter trazido – a mim, o professor mais jovem da Faculdade teológica católica da universidade de Bonn – como seu consultor na grande assembleia da Igreja, permitindo que eu estivesse presente nesta escola e percorresse do interior o caminho do Concílio. Este livro reúne os diversos escritos, com os quais pedi a palavra naquela escola; trata-se de pedidos de palavra totalmente fragmentários, dos quais transparece o próprio processo de aprendizagem que o Concílio e a sua recepção significaram e ainda significam para mim. Em todo o caso espero que estes vários contributos, com todos os seus limites, possam no seu conjunto ajudar a compreender melhor o Concílio e a traduzi-lo numa justa vida eclesial. Agradeço sentidamente ao arcebispo Gerhard Ludwig Müller e aos colaboradores do Institut Papst Benedikt XVI pelo extraordinário compromisso que assumiram para realizar este livro.
Castel Gandolfo, na memória do bispo Santo Eusébio de Vercelas, 2 de Agosto de 2012.
Bento XVI
L'Osservatore Romano, 11 de outubro de 2012
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