Crítica exacerbada:
"DOCUMENTOS
CONFIDENCIAIS DE JOÃO PAULO III"
por Francisco de Juanes
Em
síntese: O livro de Francisco de Juanes vem a ser
uma crítica acerba à Igreja, com sua história, sua fé, sua estrutura
hierárquica... Diversos pontos da imagem da Igreja são censurados em termos passionais,
imprecisos e sarcásticos; algumas acusações se baseiam em falsos pressupostos e
são mal formuladas. O livro está longe de ter a seriedade de uma obra científica;
embora o autor se refira freqüentemente à Bíblia, nunca faz uma citação bíblica
expressa (livro, capítulo e versículo). — É certo que na Igreja existem as
falhas dos homens que dela fazem parte, mas a Igreja não é apenas a soma de
pessoas frágeis; é o Corpo de Cristo prolongado, no qual Cristo vive e
indefectivelmente santifica aqueles que O procuram sinceramente. — Muito
estranha, entre outras, é a noção de pecado proposta pelo autor: seria não
empregar os meios para ser feliz (em termos materiais e até sensuais);
"quem não é feliz, está, de alguma maneira, desobedecendo a Deus" (p.
196). Daí a rejeição de toda prática de mortificação e a liberdade para
procurar o prazer do sexo nas relações pré-matrimoniais e no homossexualismo.
O
livro se ressente da eclesiologia protestante, que rejeita uma autoridade
central na Igreja e é fator de esfacelamento e deterioração do Cristianismo.
A
obra de Francisco de Juanes (pseudônimo?) vem a ser uma crítica exacerbada à
Igreja de hoje e do passado. Dentro do enredo de um "furo
jornalístico", o autor terá entrevistado o Papa João Paulo III após a sua
renúncia ao pontificado apresentada ao Concílio do México I; com o nome de
"Irmão Pedro", esse Papa fictício terá revelado ao jornalista os problemas
que o afligiam. Sob essa forma "elegante" e imaginosa, o autor do
livro ataca a Igreja e seus procedimentos de maneira geral; isto redunda em destruir
a Igreja fundada por Cristo e entregue a Pedro para constituir pequenas
comunidades eclesiais regidas pelo seu respectivo "Parlamento
democrático", à semelhança do que se dá no protestantismo.
O
livro aborda ampla temática, de modo tal que não é possível responder a todos
os seus ataques dentro dos limites de um artigo de revista. Por isto, destacaremos,
a seguir, dois pontos fundamentais da crítica levantada: autoridade na Igreja e
Teologia Moral; após o quê, faremos referência mais sumária a alguns tópicos
particulares.
1.
A AUTORIDADE NA IGREJA
1.1.
A Objeção
O
autor quer que a Igreja tome a constituição de uma democracia, cujos homens e
mulheres, casados e solteiros, responsáveis, seriam eleitos pelo povo de Deus,
"primeiro e principal depositário do Espírito Santo" (p.27). A atual
hierarquia da Igreja terá sido copiada de instituições sociais do Império
Romano pagão, de modo a gerar "dezessete séculos de paganismo romano"
(4a. capa):
"Pretender
que o sistema de eleição às ordens eclesiásticas, do diaconato ao papado e, em
geral, a seleção das pessoas para os diversos ministérios dentro da Igreja não
possa ser, 'por instituição divina' (l), um sistema democrático na base de
eleição entre os membros das comunidades que deverão ser servidas por esses
cargos e ministérios, constitui, na melhor das hipóteses, uma supina ignorância
de todos os textos que conservamos sobre as primeiras comunidades cristãs, além
de uma consagração mítica, no alvorecer do século XXI, mais ridícula que perversa,
de um hábito emprestado aos impérios e instituições sociais, administrativas e
políticas do mundo pagão nos primeiros séculos do cristianismo" (p. 39).
Esta
afirmação já é um espécime do que seja o livro de Fr. de Juannes: refere-se às
primeiras comunidades cristãs e a instituições do mundo pagão sem especificação
alguma e sem referência bibliográfica que apóie ou ilustre os dizeres do autor.
Como quer que seja, para confirmá-los, o autor diz que não há, no Novo
Testamento, menção da "figura sacralizada — sacramentalizada — do
sacerdote" (p.39). Os Apóstolos e os primeiros cristãos esperavam o fim do
mundo para breve, de modo que nunca terão pensado em sucessores e em pastoreio
estável e duradouro do rebanho de Cristo; cf. pp. 39.118.
Mais
ainda: para fundamentar sua posição, o autor defende a tese de que não
conhecemos as próprias palavras e os feitos de Jesus; cf. p.24. Em
conseqüência, não se pode apelar para o Evangelho a fim de definir a estrutura
da Igreja; cf. p.27. Disto se segue que na Igreja só existe o sacerdócio comum
ou batismal de todos os fiéis; são estes que, por via de eleições, escolhem
seus dirigentes, ... dirigentes que não gozam do carisma da infalibilidade para
guardar incólume o depósito da fé e da Moral católicas; cf. pp. 126-150.
O
tom do autor é fortemente agressivo e injurioso, recorrendo mais de uma vez ao
adjetivo "pagão" para qualificar o ministério hierárquico da Igreja.
1.2.
Que dizer?
1.2.1.
Observação Geral
A
simples leitura do livro de Francisco de Juanes revela a superficialidade do
autor; fala mais por paixão do que por raciocínio. Ao referir-se à Bíblia, não
faz uma citação explícita em toda a sua obra, como notamos atrás. Lança
afirmações genéricas, infundadas, que nenhum pesquisador criterioso abonaria.
Basta lembrar a sentença da p. 24, segundo a qual "nenhum escriturista
duvida que não conhecemos ipsissima facta et verba Christi". Para
contradizer-lhe, seja citado o protestante Joachim Jeremias, que em várias
obras suas defende a tese de que nos Evangelhos várias passagens fazem ressoar
ipsissima verba Christi (as palavras mesmas de Cristo).(1)
1 Ver, por exemplo,
J. Jeremias, Paroles de Jésus, Les
Editions du Cerf, Paris 1965. Ã p.80 desta obra lê-se o seguinte:
"Eis
aproximadamente o som que o Pai-Nosso tinha nos lábios de Jesus:
'Abba
Jitqaddásh
shemák / teté malkták lahmán delimhar / hab lán jorna dén usheboq lán hobaín /
kedishebáqnan lehajjabaín welan ta' elínnan lenisjón".
Notemos
ainda que os Evangelhos não pretendem ser a Súmula de Teologia pregada por
Jesus Cristo, mas são apenas o eco escrito da pregação oral dos Apóstolos;
ficou na Tradição oral, não escrita, muito do que Jesus disse e fez, como
adverte o próprio S. João no final do seu Evangelho; cf. Jo 20,30s; 21, 24s.
Por conseguinte, não é lícito ao estudioso dizer "Não está escrito nos
Evangelhos; por isto é falso, é de origem posterior, pagã..."; quem assim
procede, ignora o valor da Palavra oral, que berçou a escrita e a acompanha
como critério para interpretá-la.
1.2.2.
Autoridade na Igreja
A
instituição de um ministério pastoral e da autoridade hierárquica da Igreja
está muito nítida nos escritos do Novo Testamento; ver Mt 16,16-19; Lc 22,31s;
Jo 21,15-17 (no tocante a Pedro); Mt 18,18 (no tocante aos Doze).
O
interesse dos Apóstolos em instituir sucessores que dessem continuidade à sua
missão, está documentado em outras passagens do Novo Testamento, como se
depreende das observações do Pe. Yves Congar O.P.:
"Chega
um momento em que os Apóstolos (Paulo) consideram mais ou menos próximo seu
desaparecimento. Vêem chegar e crescer, ao mesmo tempo, os perigos de falsas
doutrinas, de dissensões, de provas temíveis. Portanto, outros deverão assumir
depois de sua morte a tarefa que eles haviam desempenhado na direção das
comunidades e na conservação da norma e pureza de seu ensinamento (Rm 6,17; 1Tm
1,13). São os bispos ou presbíteros de Éfeso que Paulo convoca em Mileto,
convicto de que não os tornará a ver (At 20,17-35), e, sobretudo, Tito e
Timóteo, a quem o próprio Paulo havia imposto as mãos com todo o colégio dos
presbíteros (2Tm 1,6;1ITm 4,14). Estes não só terão que permanecer pessoalmente
firmes na sã doutrina e conservar o depósito, mas além disso deverão assegurar
a continuidade da obra apostólica: instituir presbíteros locais (Tt 1,5) apoiando-se
numa autoridade superior à sua própria (1Tm 5,17-22), transmitir-lhes a
doutrina (2Tm 2,2), escolhendo pessoas capazes de transmiti-la também retamente
(Tt 1,9; 2,1.15): 'o que aprendeste de mim com o testemunho de numerosas
testemunhas, confia-o a homens seguros, capazes, por sua vez, de instruir
outros'. Esta instituição se realizará pela imposição das mãos, como se havia
feito com o próprio Timóteo (1 Tm 5,22 e 4,14). Podemos concluir com Ph. Menoud:
'Sendo o apostolado também o ministério da edificação da Igreja, deve ter
continuidade, como prova o exemplo de um Timóteo ou um Tito e o dever prescrito
a Timóteo de assegurar-se sucessores' "(Mysterium
Salutis IV/3, p. 172).
De
resto, é evidente a necessidade de autoridade na Igreja, como aliás em toda e
qualquer sociedade que deseje desempenhar a sua missão. A autoridade coordena
as diversas funções e as faz convergir para a unidade. Exemplo do que vem a ser
o Cristianismo sem autoridade central, "democraticamente governado"
pelos fiéis é o protestantismo contemporâneo. Neste o subjetivismo dos
indivíduos e dos grupos é tal que o povo crente se esfacela cada vez mais e se
afasta progressivamente do Evangelho; certas recentes denominações tendem a
retornar ao Antigo Testamento, em detrimento do Novo; outras admitem um livro
de revelações além dos Evangelhos... Principalmente quando se trata dos valores
da fé, há necessidade de garantir a incolumidade dos mesmos, dada a sua
importância capital; por isto não se pode crer que o Senhor Deus tenha entregue
ao arbítrio dos homens a organização da sua Igreja e a interpretação da Boa-Nova;
Ele mesmo terá providenciado (como bem atesta o Evangelho) a instituição de um
colegiado de pastores, sob a direção de Pedro e seus sucessores, colegiado que
conta com a assistência do Espírito Santo para que, em matéria de fé e de
Moral, se faça a transmissão fiel a todos os povos (cf. Mt 28,18-20; Jo 14,16.26;
16,13-15). Sem esta dádiva de Deus à sua Igreja, teria sido vão o ministério de
Cristo e vã a sua obra salvífica, porque os homens se encarregariam de
deteriorar, segundo os seus caprichos, o tesouro da Palavra e os canais da
graça.
1.2.3.
Paganismo na Igreja?
Os
exegetas contemporâneos são menos propensos do que os de outrora a admitir
influência helenística nos escritos do Novo Testamento, pois se vê atualmente muito
melhor como o Novo Testamento depende o Antigo. Os paralelos entre Cristianismo
do século IV e paganismo do Império Romano (na época de Constantino Magno e
depois) são artificiais e resultam de preconceitos muito mais do que de uma
análise objetiva dos fatos. A propósito apraz citar as palavras de um exegeta
alemão — P.G. Müller —, que vê na Igreja, tal como Ela se manifesta através dos
séculos, não a deformação dos Evangelhos, mas o único canal que temos para conhecer
Jesus Cristo; lembra ele muito sabiamente que o único Jesus que conhecemos, só
o conhecemos através da Igreja, a tal ponto que Igreja e Jesus Cristo são
inseparáveis um do outro:
"A
tradição do que é propriamente Jesus, não pode ser pensada sem o fato 'Igreja',
porque esse Jesus, como conteúdo da tradição-de-Jesus, só foi conservado de
maneira permanente pela Igreja, devido ao interesse eclesial por Jesus. Um
Jesus sem ou fora da Igreja nunca existiu e, em última instância, nunca poderá
existir, porque com a perda da Igreja também se perde a única instância que é
capaz de testemunhar quem é Jesus e o que ele significa. Isto porque toda a
linguagem do Novo Testamento é uma linguagem testemunhal, inclusive os logia de
Jesus. Quem portanto não ouve essa linguagem do testemunho eclesial, também não
ouve Jesus" (Jesus ja — Kirche nein, em
Theologische praktische Quarta/schrift 126 (1978) pp. 129-137). Citado por A.
Barreiro, Povo Santo e Pecador, p.
31.
É
oportuno observar que P.G. Müller, no artigo citado, estuda e refuta a objeção "Jesus,
sim — Igreja, não", é citado por Alvaro
Barreiro no seu livro "Povo Santo e Pecador", que apresentamos em PR 391/1994,
pp. 530-545; é de notar a diferença de estilo e mentalidade existente entre o
livro de A. Barreiro e o de Fr. de Juanes: aquele é documentado, preciso,
meticuloso, sabe pôr os pingos nos iis e ler os matizes dos textos e acontecimentos,
ao passo que de Juanes é emotivo, dado a preconceitos e generalizações, que
tiram à obra o caráter científico e fidedigno que seria de esperar em se
tratando de temática tão deliciada.
2. A
MORAL CATÓLICA
2.1.
Princípio básico
Francisco
de Juanes critica fortemente a Moral Católica, especialmente no que diz
respeito à sexualidade: aceita o divórcio, o homossexualismo, as relações
pré-matrimoniais (ver pp. 187-195). A razão pela qual o autor legitima tais
práticas, é a seguinte: Deus quer que o homem seja feliz; por isto não se devem
proibir os procedimentos nos quais as pessoas julgam encontrar a sua
felicidade. Eis textualmente o que se lê á p.196:
"7.5
Que, na realidade, o pecado fundamental do homem é não ser feliz, não pôr os
meios para ser realmente feliz. A vontade fundamental do Criador é que sejamos
felizes: quem não é feliz, está, de alguma maneira, desobedecendo a Deus.
7.6.Que,
sendo a primeira obrigação do homem, segundo o Evangelho de Jesus, preocupar-se
com amor fraternal pela felicidade do outro, a primeiríssima obrigação desse
homem é a de ser feliz ele próprio, pois quem não é feliz não pode dar
felicidade — ninguém dá o que não tem —, o que é amargo amarga, o insatisfeito
não satisfaz e o neurótico obsessivo neurotiza seu ambiente — o que nossos avós
diziam com mais simplicidade: 'Um louco faz cem', sobretudo se for clérigo,
acrescentamos nós.
7.7.Que
é urgente, para a felicidade de todos, que a Igreja perca aos olhos dos fiéis o
poder de legislar sobre o que é bom e o que é mau, em matéria de moralidade
sexual e em qualquer outra; nosso poder deve limitar-se a pôr diante dos olhos
dos crentes, com nossa palavra e nossa vida, o que o Senhor Jesus, que 'só
falava o que havia escutado do Pai', julgou por bem estabelecer como lei para
nossa felicidade, para nós, que, sabia, tínhamos sexo, além de siso".
As
mesmas idéias ocorrem também à p. 120, servindo para ridicularizar as práticas
de mortificação (jejum, abstinência e outras) das carmelitas e dos fiéis
católicos em geral:
"É
vontade de Deus que todos sejamos felizes e que soframos o menos possível.
Portanto quem, voluntariamente, sem benefício algum para ninguém à sua volta,
se impõe algum sofrimento físico, psíquico ou moral, está desobedecendo a Deus,
contrariando sua vontade, pois 'tu abrigas, Senhor, pensamentos de bondade e
não de aflição a respeito de todas as criaturas', como diz a Escritura".
Como
se vê, felicidade é
aqui entendida no sentido racional ou filosófico da palavra, sem se levar em
conta o conceito de felicidade decorrente das bem-aventuranças evangélicas; cf.
Mt 5,3-12; Lc 6,20-26. Existe, sim, enorme alegria para o cristão que se
configura à Páscoa de Cristo, morrendo ao velho homem para permitir que se
forme nele a nova criatura. O autor professa uma noção subjetiva de felicidade,
inspirada pelo hedonismo sensual de nossos dias. Deus quer que sejamos felizes,
sim, mas seguindo Jesus Cristo, que morreu na Cruz a fim de ressurgir como o
novo Adão. A felicidade dos sentidos e dos bens materiais passageiros torna-se
ilusória, se não é acompanhada de radical renúncia a toda cobiça desregrada ou
de mortificação dos resíduos de pecado que habitam em nós. Não há vida plena
sem prévia morte ao velho homem.
Em
conseqüência de suas premissas, o autor dá a entender que pecado é tão somente
aquilo que prejudica o próximo; não haveria pecado do indivíduo contra Deus e
contra si mesmo:
"Como
podemos nós... dizer a um pobre homem ou a uma pobre mulher que pecam mortalmente
ao fazerem isso ou aquilo se, em primeiro lugar, não se vê de modo algum que
prejudicam alguém e, em segundo lugar, se carecemos de fundamentação revelada
para sequer falar do tema?" (p. 178; ver p. 120).
"Não
está em jogo nada moral, se não está em jogo o amor a alguém ou o dano a um
terceiro" (p. 179).
2.2.
Lei natural
O
autor menospreza o conceito de lei natural, chegando a ridicularizá-lo quando
diz:
"Deve-se
pregar sem equívocos a generosa atitude vital de compartilhar e de multiplicar
a vida — em qualidade e não só em quantidade — e seus beneficiários, insistindo
mais na honestidade dos fins do que na 'moralidade intrínseca dos meios, por
natureza'. Que sabemos nós e o Papa da natureza? Deixemo-la aos cientistas
deste mundo; temos outras luzes, não caiamos no orgulho de querer saber tudo;
já nos basta a ignorância dos mistérios da Cruz e da Ressurreição" (pp.
177s).
Nesta
secção o autor parece defender o falso princípio de que o fim justifica os
meios; promover a qualidade da vida seria um objetivo em vista do qual todos os
meios — naturais e antinaturais — seriam lícitos. A alegação de que não
conhecemos suficientemente a natureza para poder falar de lei natural, é um
sofisma, pois, no caso da Moral não se trata de conhecer o makrokosmos ou o
mikrokosmos, mas simplesmente de conhecer as leis segundo as quais o organismo
humano funciona. As ciências da anatomia e da fisiologia conhecem o bastante
para fundamentar o correto comportamento humano: não abusar do fumo, da comida,
da bebida, da genitalidade...
A
lei natural é a lei do Criador, impressa na natureza humana. As leis positivas
não hão de ser mais do que a explicitação da lei natural, que diz: Não matar,
não roubar, não adulterar, não levantar falso testemunho, honrar pai e mãe,
respeitar o próprio corpo e as normas de seu funcionamento... Ora a Moral
Católica está baseada na lei natural; a Igreja não vem a ser senão a porta-voz das
leis do Criador, principalmente quando se trata da Ética da sexualidade. Deus
não fala somente pela Escritura, mas também pela natureza que Ele criou; em conseqüência,
não é necessário apontar um texto bíblico para justificar os preceitos e as
proibições decorrentes da lei natural.
Às
pp. 174-176 o autor propõe uma interrogação procedente de grave equívoco:
"Se
é imoral todo ato sexual no qual se separa mentalmente o próprio ato da
possibilidade da fecundação com vistas a um novo filho, como se explica que a
doutrina oficial do Vaticano não declare imorais as relações sexuais de casais
em idade avançada, ou depois da menopausa da esposa, ou depois de uma
intervenção cirúrgica de extirpação do ovário por causa de tumor maligno?"
(P. 175).
Salta
aos olhos o sofisma: o que a S. Igreja (não se diga "o Vaticano",
pois este nome designa o Estado ou a Cidade respectiva) rejeita, é a mutilação
da natureza, que ocorre quando se empregam recursos artificiais; a Igreja,
porém, não rejeita as relações conjugais, quando a própria natureza é estéril. O
que interessa, não é procriar, mas é respeitar a natureza, que Deus fez. Aliás,
a medicina mesma reconhece que qualquer contravenção às leis da natureza é
daninha para o organismo humano.
Passemos
agora a alguns tópicos particulares.
3.
TÓPICOS PARTICULARES
Quase
cada página do livro de Francisco de Juanes converge para uma crítica à Igreja.
Destaquemos ainda os seguintes pontos:
3.1. A
Eucaristia
O
autor revela ignorância (inocente?... ou preconceituosa?) quando se refere à
Eucaristia.
a)
Nega a real presença de Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados
como se tal presença excluísse a presença de Cristo nos irmãos e no mundo em
geral. — Ora a Teologia afirma apenas que Cristo está presente na Eucaristia
não apenas por sua imagem e semelhança ou por sua ação redentora, mas de
maneira singular ou substancial, pois a consagração eucarística faz que a
substância do pão e do vinho se converta na do corpo e sangue de Cristo. A
propósito é muito eloqüente o testemunho do ex-pastor batista Francisco Almeida
Araújo, que se converteu ao Catolicismo precisamente quando estudava a S.
Eucaristia. Eis as suas palavras no livro "Em Defesa da Fé" pp. 74-76:
"Por
que deixei de ser protestante e agora sou católico pela graça de Deus?
É
o que pretendo narrar aqui, mesmo que de forma muito resumida.
Tudo
aconteceu por causa de um estudo que fiz sobre a Ceia do Senhor, em 1 Coríntios
11,23-32, passagem sobre que já havia pregado tantas vezes e que tinha estudado
com seriedade. Ao ler os versículos 23 e 24: 'Eu recebi do Senhor o que vos
transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o Pão, e,
depois de ter dado graças, partiu-o e disse: ISTO É O MEU CORPO, QUE É ENTREGUE
POR VÓS...' Volto a afirmar: quantas vezes havia lido, estudado e pregado esse
texto! Mas nesse dia foi diferente. As palavras do Senhor falaram fundo ao meu
coração: 'ISTO é O MEU CORPO'.
Eu
havia aprendido com meus professores de teologia, estudando nos compêndios
clássicos da teologia protestante, que o texto devia ser entendido como:
'representa' o meu corpo, 'simboliza' o meu corpo. Eu havia aprendido ainda que
tudo aquilo era um mero memorial, nem mesmo era sacramento, mas uma simples
ordenança...
Mas
ali estava a Palavra de Deus dizendo claramente: 'ISTO é O
MEU CORPO'.
Sem
deixar transparecer tudo que se passava em meu coração, sem nada revelar a
ninguém, iniciei um estudo mais sério, mais cuidadoso, sobre o assunto. Li e
reli várias vezes os Evangelhos e todo o restante do Novo Testamento em busca
de uma resposta que acabasse com aquela dúvida em meu coração.
Após
algum tempo de estudos, regados de lágrimas e orações, estando um dia de
joelhos em meu quarto, a sós, com a Bíblia aberta sobre a cama, estudando no
Evangelho de São João 6,25-71, descobri a maravilhosa verdade sobre a
Eucaristia. Caiem prantos de alegria incontida. Havia poucas horas, me
ajoelhava como um Pastor protestante, embora com o coração aflito, cheio de
dúvidas, e eis que agora me levanto como Católico Apostólico Romano!
Deus
seja Bendito para sempre!
Eu
sabia que somente a Igreja Católica ensinava a verdade sobre a Eucaristia: a
presença real do Cristo na hóstia e no vinho consagrados".
A
Física moderna, embora tenha revolucionado o conceito de matéria, não invalidou
as noções filosóficas de substância, essência e acidentes. Com efeito; as
ciências naturais se desenvolvem no plano empírico e imediato, ao passo que a
Filosofia vai até as causas e noções últimas. Por versarem em planos diferentes,
a Filosofia e a Física não entram em choque entre si.
b)
Fr. de Juanes ridiculariza o conceito de Eucaristia como perpetuação sacramental
do sacrifício da Cruz.
"Insistiu-se
durante séculos no aspecto sacrifical da celebração eucarística... Insistiu-se
obsessivamente no caráter... cruel (Deus perdoa somente se vê que alguém
paga/sofre/sangra em satisfação pelos pecados cometidos... o Deus 'desumano dos
pagãos) dos sacrifícios das religiões antigas... Passados já vinte séculos,
quando se livrará nossa Igreja desses vestígios sacrificais desumanos de um
paganismo aparentemente superado?" (p. 117).
Dir-se-ia
que o autor acusa sem avaliar bem o que está dizendo. Na verdade, Deus não
precisa de pagamento nem de sangue dos homens. Todavia Ele quer resgatar do
pecado o homem, usando de mais sabedoria do que se o fizesse com uma só palavra
judiciária fria. Sim; Ele quis entrar dentro dos trâmites da vida humana,
fazendo-se Ele mesmo homem; nasceu, trabalhou, sofreu e morreu cruelmente para santificar
e transfigurar o comezinho ,ou o cotidiano da vida dos homens e fazer da
própria morte a passagem para uma vida nova ou a ressurreição. Assim o homem
redimido sofre e morre (como lhe é natural), mas
sofre e morre certo de que esses termos negativos possuem um significado
positivo, porque Deus os assumiu. E, antes de partir para o Pai, Jesus Cristo,
na última ceia, quis deixar-nos a perpetuação do seu sacrifício; a Eucaristia
torna presente o sacrifício da Cruz para que dele participemos como cooferentes
e cooferecidos com Cristo; nós nos oferecemos com Cristo ao Pai em cada S.
Missa, a fim de consagrar-Lhe nossa vida e luta de cada dia e receber o
alimento necessário para continuarmos a caminhar até a plenitude da vida. É
este o belo significado da Eucaristia, que nada tem de pagão; ademais a prática
de imolar animais irracionais, representativos do homem, não é pagã, pois se
encontra muito enfatizada na Lei de Moisés.
c)
Fr. de Juanes preconiza a celebração da Eucaristia não com pão de trigo e vinho
de uva, mas com pão de arroz e chá na China ou com suco de frutas em outros
países. — Respondemos: a Igreja não tem autoridade sobre a matéria dos
sacramentos; estes são de instituição divina, e não eclesiástica; por
conseguinte, deve-se guardar o sinal escolhido por Jesus. É falso dizer que na
África o vinho eucarístico é "artigo de alto luxo, acessível apenas a uma
minoria de europeus geralmente hospedados em hotéis cinco estrelas" (p. 116).
Na verdade, o vinho eucarístico é o menos sofisticado; é precisamente aquele
que não se encontra na mesa dos hotéis de luxo.
3.2. Julgamento sem
Testemunhas
O
autor fala de "anulação do casamento sacramental" em vez de falar de
"declaração de nulidade"; cf. pp. 26.191. A Igreja não dissolve (não
anula) o casamento sacramental validamente contraído e consumado carnalmente,
mas Ela pode declarar, caso haja evidência, que um casamento aparentemente
válido foi sempre nulo por causa de um impedimento latente ou desconhecido.
Chama a atenção a tese de Fr. de Juanes segundo a qual a Igreja deveria
declarar nulo determinado casamento baseando-se apenas na alegação, dele ou
dela, de que se casara sem amor e, sim, por motivos interesseiros; não seriam
necessárias testemunhas para confirmar tal alegação (cf. p. 191). — Ora, via de
regra, nenhum tribunal dispensa testemunhas; não bastam as alegações das
pessoas contendentes para que o juiz possa formar a sua consciência.
3.3. Processos de
Beatificação e Canonização
O
autor é infenso à Prelazia do Opus Dei e não deixa de o manifestar mais de uma
vez; contesta, por exemplo, a Beatificação de Mons. Escrivá de Balaguer,
fundador de tal instituição. Parece assim ignorar o afluxo de multidão que esta
solenidade provocou na cidade de Roma; eram milhares
e milhares de fiéis beneficiados pelo Caminho apontado por Mons. Escrivá para
seguir Jesus Cristo.
Quanto
aos milagres necessários para a Beatificação e Canonização de um(a) Servo(a) de
Deus, Fr. de Juanes usa de sátira. Esquece a precisão com que a Igreja examina
os fatos portentosos a Ela apresentados, havendo mesmo um Advogado do Diabo
para levantar todas as possíveis objeções ao reconhecimento do milagre. Cf.
p.241.
3.4.A inquisição
O
autor não podia deixar de mencionar a Inquisição na sua catilinária contra a
Igreja. — A propósito foi publicado o livro do Prof. João Bernardino Gonzaga: A
Inquisição em seu Mundo, Ed. Saraiva, São Paulo, livro analisado em PR
383/1994, pp. 158-167. A obra reconstitui o ambiente da Idade Média e ajuda o
leitor a compreender a Inquisição como os medievais a entendiam, e não como o
homem do século XX, dotado de outros referenciais, a considera.
3.5.
As quinze acusações finais
No
fim do livro são catalogadas quinze acusações levantadas contra a Igreja a
partir do seu passado; cf. pp. 219s.
Quem
as lê, pode ficar impressionado, mas, refletindo um pouco, verificará que
1)
o autor escreve em estilo de panfleto,
generalizando problemas, longe da exatidão que caracteriza uma obra científica,
merecedora de consideração. Quem quer ser justo ao analisar a história, deve
procurar remontar à época passada e investigar os parâmetros de que dispunham
os antepassados para pensar e agir. Vários fatos que teoricamente são inconcebíveis
ao homem moderno, não horrorizavam os antigos, mesmo os mais virtuosos;
2)
o autor põe no mesmo plano o essencial e o
secundário. Nenhum fiel católico devidamente ilustrado nega erros dos homens da
Igreja; sabe, porém, que tais erros não afetaram a autenticidade da fé e a
missão santificadora da Igreja-sacramento. Muito oportuna a este respeito é a
obra de Álvaro Barreiro: "Povo Santo e Pecador, Ed. Loyola, São Paulo
1994;
3)
há na lista em pauta acusações falsas ou
improcedentes, que atestam a superficialidade e o preconceito do autor. Assim
a)
nunca "foi declarada infalível e portanto intocável a ciência filológica do
benemérito tradutor da Vulgata, versão latina da Bíblia" (p.220). — Na
verdade, o autor alude a uma afirmação do Concílio de Trento (1545-1563): este
apenas declarou que a tradução latina dita Vulgata podia ser, no turbilhão das
diversas traduções vernáculas efetuadas no século XVI, considerada isenta de
erros teológicos...; isto estava longe de implicar infalibilidade filológica. O
Papa Pio XII o comenta em Carta dirigida ao Episcopado da Itália (1941):
"O
Concílio de Trento declarou autêntica a Vulgata em sentido Jurídico, isto é,
dotada de autoridade para fundamentar a fé e a Moral, mas não excluiu possíveis
divergências da Vulgata em relação ao texto original e a outras traduções, como
todo bom manual de Introdução Bíblica expõe claramente, de acordo com as Atas
mesmas do Concílio de Trento" (En-quirídio Bíblico, no
527).
b)
Paulo VI "terá declarado verdade revelada não somente certos dogmas, mas
até as palavras de sua formulação, como no caso do mistério eucarístico" (pp.
220s). — Na verdade, deu-se o seguinte: durante o Concílio do Vaticano II
(1962-1965), os teólogos holandeses tentaram reformular o dogma eucarístico, propondo
as palavras "transfinalização" e "transignificação" em
lugar de "transubstanciação", pois alegavam que este vocábulo
clássico não é inteligível ao homem de hoje. A proposta, porém, causou, de
imediato, vários mal-entendidos e desvios da fé no povo de Deus; daí a encíclica
de Paulo VI Mysterium Fidei (1965), que reafirmava a necessidade de se manter o
vocabulário habitual para evitar os equívocos daninhos, que a experiência
apontava. Este gesto do Papa está longe de equivaler a "declarar como
verdade revelada... as palavras de formulação de um dogma".
Estes
dois últimos espécimes de crítica bem mostram a índole passional e preconcebida
do livro de Fr. de Juanes.
Muitos
outros tópicos poderiam ainda ser abordados. 0 que foi dito, porém, já permite
formular uma conclusão.
4. CONCLUSÃO
As
páginas do livro analisado tendem a reduzir o Cristianismo a um movimento
"místico", de índole "democrática", inspirado pelo lema de
que "o pecado fundamental do homem é não ser feliz, não pôr os meios para
ser realmente feliz. Quem não é feliz, está, de alguma maneira, desobedecendo a
Deus" (p. 196). Estão subjacentes a esta concepção a eclesiologia
do protestantismo e o subjetivismo hedonístico da sociedade contemporânea. — Ora
é preciso observar que, quando alguém se chega a Deus, deve admitir que Deus é
o centro e o referencial, e não o homem. Principalmente quem professa o
Cristianismo, há de tomar consciência de que o Deus-referencial é o Deus "que
tanto amou o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê
não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3,16). Ninguém vai a Deus Pai
senão por Cristo Crucificado, que vive no sacramento da sua Igreja (cf. 1Cor
12,12-27; Cl 1,24). Daí a necessidade de fé não somente em Deus e em Jesus
Cristo, mas também na Igreja. Esta é inseparável de Jesus Cristo. "Não
pode ter Deus por Pai no céu quem não tem a Igreja por Mãe na terra" (S. Cipriano
de Cartago, Sobre a Unidade da Igreja, cap. 4). Pode-se indicar, como
contra-parte do livro de Fr. de Juanes, o de Alvaro Barreiro: Povo Santo e
Pecador. A Igreja questionada e acreditada. Ed. Loyola, São Paulo 1994. É obra
que considera sinceramente os aspectos humanos e limitados da Igreja, mas
apresenta outrossim uma visão global do mistério da Igreja, Esposa de Cristo
(cf. Ef 5,25-27) e Mãe de todos os cristãos (cf. Gl 4,26), como muito bem apregoa
o Cardeal Henri de Lubac:
"Pois
bem, esta Igreja santa às vezes é abandonada por alguns que receberam tudo dela
e que se tornaram cegos aos seus dons. Por vezes, em certos momentos como
agora, se mofam dela alguns que continuam a receber dela seu alimento. Um vento
de crítica amarga, universal e sem inteligência, chega por vezes a transtornar
as cabeças e a apodrecer os corações. Um vento assolador, esterilizante, um
vento destruidor, hostil ao sopro do Espírito. É então, quando contemplo o
rosto humilhado de minha mãe, quando a amo mais. Sem me lançar a contra-críticas,
saberei demonstrar que a amo na sua forma de escrava. E, justamente na hora em
que alguns ficam hipnotizados diante dos traços de um rosto apresentado como
envelhecido, o amor me fará descobrir nela, com muito mais verdade, suas forças
ocultas, suas atividades silenciosas, que constituem sua perene juventude,
todas as grandes coisas que nascem no seu coração e que converterão a terra por
contágio ".([1])
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)
[1] H. DE LUBAC, Paradoja y
misterio de la Iglesia, 25.
Eu quero faze o download do CD irmão...
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