quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

"Documentos confidenciais de João Paulo III".

Crítica exacerbada:

"DOCUMENTOS CONFIDENCIAIS DE JOÃO PAULO III"

por Francisco de Juanes

Em síntese: O livro de Francisco de Juanes vem a ser uma crítica acerba à Igreja, com sua história, sua fé, sua estrutura hierárquica... Diversos pontos da imagem da Igreja são censurados em termos passionais, imprecisos e sarcásticos; algumas acusações se baseiam em falsos pressupostos e são mal formuladas. O livro está longe de ter a seriedade de uma obra científica; embora o autor se refira freqüentemente à Bíblia, nunca faz uma citação bíblica expressa (livro, capítulo e versículo). — É certo que na Igreja existem as falhas dos homens que dela fazem parte, mas a Igreja não é apenas a soma de pessoas frágeis; é o Corpo de Cristo prolongado, no qual Cristo vive e indefectivelmente santifica aqueles que O procuram sinceramente. — Muito estranha, entre outras, é a noção de pecado proposta pelo autor: seria não empregar os meios para ser feliz (em termos materiais e até sensuais); "quem não é feliz, está, de alguma maneira, desobedecendo a Deus" (p. 196). Daí a rejeição de toda prática de mortificação e a liberdade para procurar o prazer do sexo nas relações pré-matrimoniais e no homossexualismo.
O livro se ressente da eclesiologia protestante, que rejeita uma autoridade central na Igreja e é fator de esfacelamento e deterioração do Cristianismo.

A obra de Francisco de Juanes (pseudônimo?) vem a ser uma crítica exacerbada à Igreja de hoje e do passado. Dentro do enredo de um "furo jornalístico", o autor terá entrevistado o Papa João Paulo III após a sua renúncia ao pontificado apresentada ao Concílio do México I; com o nome de "Irmão Pedro", esse Papa fictício terá revelado ao jornalista os problemas que o afligiam. Sob essa forma "elegante" e imaginosa, o autor do livro ataca a Igreja e seus procedimentos de maneira geral; isto redunda em destruir a Igreja fundada por Cristo e entregue a Pedro para constituir pequenas comunidades eclesiais regidas pelo seu respectivo "Parlamento democrático", à semelhança do que se dá no protestantismo.

O livro aborda ampla temática, de modo tal que não é possível responder a todos os seus ataques dentro dos limites de um artigo de revista. Por isto, destacaremos, a seguir, dois pontos fundamentais da crítica levantada: autoridade na Igreja e Teologia Moral; após o quê, faremos referência mais sumária a alguns tópicos particulares.

1. A AUTORIDADE NA IGREJA

1.1. A Objeção

O autor quer que a Igreja tome a constituição de uma democracia, cujos homens e mulheres, casados e solteiros, responsáveis, seriam eleitos pelo povo de Deus, "primeiro e principal depositário do Espírito Santo" (p.27). A atual hierarquia da Igreja terá sido copiada de instituições sociais do Império Romano pagão, de modo a gerar "dezessete séculos de paganismo romano" (4a. capa):

"Pretender que o sistema de eleição às ordens eclesiásticas, do diaconato ao papado e, em geral, a seleção das pessoas para os diversos ministérios dentro da Igreja não possa ser, 'por instituição divina' (l), um sistema democrático na base de eleição entre os membros das comunidades que deverão ser servidas por esses cargos e ministérios, constitui, na melhor das hipóteses, uma supina ignorância de todos os textos que conservamos sobre as primeiras comunidades cristãs, além de uma consagração mítica, no alvorecer do século XXI, mais ridícula que perversa, de um hábito emprestado aos impérios e instituições sociais, administrativas e políticas do mundo pagão nos primeiros séculos do cristianismo" (p. 39).

Esta afirmação já é um espécime do que seja o livro de Fr. de Juannes: refere-se às primeiras comunidades cristãs e a instituições do mundo pagão sem especificação alguma e sem referência bibliográfica que apóie ou ilustre os dizeres do autor. Como quer que seja, para confirmá-los, o autor diz que não há, no Novo Testamento, menção da "figura sacralizada — sacramentalizada — do sacerdote" (p.39). Os Apóstolos e os primeiros cristãos esperavam o fim do mundo para breve, de modo que nunca terão pensado em sucessores e em pastoreio estável e duradouro do rebanho de Cristo; cf. pp. 39.118.

Mais ainda: para fundamentar sua posição, o autor defende a tese de que não conhecemos as próprias palavras e os feitos de Jesus; cf. p.24. Em conseqüência, não se pode apelar para o Evangelho a fim de definir a estrutura da Igreja; cf. p.27. Disto se segue que na Igreja só existe o sacerdócio comum ou batismal de todos os fiéis; são estes que, por via de eleições, escolhem seus dirigentes, ... dirigentes que não gozam do carisma da infalibilidade para guardar incólume o depósito da fé e da Moral católicas; cf. pp. 126-150.

O tom do autor é fortemente agressivo e injurioso, recorrendo mais de uma vez ao adjetivo "pagão" para qualificar o ministério hierárquico da Igreja.

1.2. Que dizer?

1.2.1. Observação Geral

A simples leitura do livro de Francisco de Juanes revela a superficialidade do autor; fala mais por paixão do que por raciocínio. Ao referir-se à Bíblia, não faz uma citação explícita em toda a sua obra, como notamos atrás. Lança afirmações genéricas, infundadas, que nenhum pesquisador criterioso abonaria. Basta lembrar a sentença da p. 24, segundo a qual "nenhum escriturista duvida que não conhecemos ipsissima facta et verba Christi". Para contradizer-lhe, seja citado o protestante Joachim Jeremias, que em várias obras suas defende a tese de que nos Evangelhos várias passagens fazem ressoar ipsissima verba Christi (as palavras mesmas de Cristo).(1)

1 Ver, por exemplo, J. Jeremias, Paroles de Jésus, Les Editions du Cerf, Paris 1965. Ã p.80 desta obra lê-se o seguinte:
"Eis aproximadamente o som que o Pai-Nosso tinha nos lábios de Jesus:
'Abba
Jitqaddásh shemák / teté malkták lahmán delimhar / hab lán jorna dén usheboq lán hobaín / kedishebáqnan lehajjabaín welan ta' elínnan lenisjón".

Notemos ainda que os Evangelhos não pretendem ser a Súmula de Teologia pregada por Jesus Cristo, mas são apenas o eco escrito da pregação oral dos Apóstolos; ficou na Tradição oral, não escrita, muito do que Jesus disse e fez, como adverte o próprio S. João no final do seu Evangelho; cf. Jo 20,30s; 21, 24s. Por conseguinte, não é lícito ao estudioso dizer "Não está escrito nos Evangelhos; por isto é falso, é de origem posterior, pagã..."; quem assim procede, ignora o valor da Palavra oral, que berçou a escrita e a acompanha como critério para interpretá-la.

1.2.2. Autoridade na Igreja

A instituição de um ministério pastoral e da autoridade hierárquica da Igreja está muito nítida nos escritos do Novo Testamento; ver Mt 16,16-19; Lc 22,31s; Jo 21,15-17 (no tocante a Pedro); Mt 18,18 (no tocante aos Doze).

O interesse dos Apóstolos em instituir sucessores que dessem continuidade à sua missão, está documentado em outras passagens do Novo Testamento, como se depreende das observações do Pe. Yves Congar O.P.:

"Chega um momento em que os Apóstolos (Paulo) consideram mais ou menos próximo seu desaparecimento. Vêem chegar e crescer, ao mesmo tempo, os perigos de falsas doutrinas, de dissensões, de provas temíveis. Portanto, outros deverão assumir depois de sua morte a tarefa que eles haviam desempenhado na direção das comunidades e na conservação da norma e pureza de seu ensinamento (Rm 6,17; 1Tm 1,13). São os bispos ou presbíteros de Éfeso que Paulo convoca em Mileto, convicto de que não os tornará a ver (At 20,17-35), e, sobretudo, Tito e Timóteo, a quem o próprio Paulo havia imposto as mãos com todo o colégio dos presbíteros (2Tm 1,6;1ITm 4,14). Estes não só terão que permanecer pessoalmente firmes na sã doutrina e conservar o depósito, mas além disso deverão assegurar a continuidade da obra apostólica: instituir presbíteros locais (Tt 1,5) apoiando-se numa autoridade superior à sua própria (1Tm 5,17-22), transmitir-lhes a doutrina (2Tm 2,2), escolhendo pessoas capazes de transmiti-la também retamente (Tt 1,9; 2,1.15): 'o que aprendeste de mim com o testemunho de numerosas testemunhas, confia-o a homens seguros, capazes, por sua vez, de instruir outros'. Esta instituição se realizará pela imposição das mãos, como se havia feito com o próprio Timóteo (1 Tm 5,22 e 4,14). Podemos concluir com Ph. Menoud: 'Sendo o apostolado também o ministério da edificação da Igreja, deve ter continuidade, como prova o exemplo de um Timóteo ou um Tito e o dever prescrito a Timóteo de assegurar-se sucessores' "(Mysterium Salutis IV/3, p. 172).

De resto, é evidente a necessidade de autoridade na Igreja, como aliás em toda e qualquer sociedade que deseje desempenhar a sua missão. A autoridade coordena as diversas funções e as faz convergir para a unidade. Exemplo do que vem a ser o Cristianismo sem autoridade central, "democraticamente governado" pelos fiéis é o protestantismo contemporâneo. Neste o subjetivismo dos indivíduos e dos grupos é tal que o povo crente se esfacela cada vez mais e se afasta progressivamente do Evangelho; certas recentes denominações tendem a retornar ao Antigo Testamento, em detrimento do Novo; outras admitem um livro de revelações além dos Evangelhos... Principalmente quando se trata dos valores da fé, há necessidade de garantir a incolumidade dos mesmos, dada a sua importância capital; por isto não se pode crer que o Senhor Deus tenha entregue ao arbítrio dos homens a organização da sua Igreja e a interpretação da Boa-Nova; Ele mesmo terá providenciado (como bem atesta o Evangelho) a instituição de um colegiado de pastores, sob a direção de Pedro e seus sucessores, colegiado que conta com a assistência do Espírito Santo para que, em matéria de fé e de Moral, se faça a transmissão fiel a todos os povos (cf. Mt 28,18-20; Jo 14,16.26; 16,13-15). Sem esta dádiva de Deus à sua Igreja, teria sido vão o ministério de Cristo e vã a sua obra salvífica, porque os homens se encarregariam de deteriorar, segundo os seus caprichos, o tesouro da Palavra e os canais da graça.

1.2.3. Paganismo na Igreja?

Os exegetas contemporâneos são menos propensos do que os de outrora a admitir influência helenística nos escritos do Novo Testamento, pois se vê atualmente muito melhor como o Novo Testamento depende o Antigo. Os paralelos entre Cristianismo do século IV e paganismo do Império Romano (na época de Constantino Magno e depois) são artificiais e resultam de preconceitos muito mais do que de uma análise objetiva dos fatos. A propósito apraz citar as palavras de um exegeta alemão — P.G. Müller —, que vê na Igreja, tal como Ela se manifesta através dos séculos, não a deformação dos Evangelhos, mas o único canal que temos para conhecer Jesus Cristo; lembra ele muito sabiamente que o único Jesus que conhecemos, só o conhecemos através da Igreja, a tal ponto que Igreja e Jesus Cristo são inseparáveis um do outro:

"A tradição do que é propriamente Jesus, não pode ser pensada sem o fato 'Igreja', porque esse Jesus, como conteúdo da tradição-de-Jesus, só foi conservado de maneira permanente pela Igreja, devido ao interesse eclesial por Jesus. Um Jesus sem ou fora da Igreja nunca existiu e, em última instância, nunca poderá existir, porque com a perda da Igreja também se perde a única instância que é capaz de testemunhar quem é Jesus e o que ele significa. Isto porque toda a linguagem do Novo Testamento é uma linguagem testemunhal, inclusive os logia de Jesus. Quem portanto não ouve essa linguagem do testemunho eclesial, também não ouve Jesus" (Jesus ja — Kirche nein, em Theologische praktische Quarta/schrift 126 (1978) pp. 129-137). Citado por A. Barreiro, Povo Santo e Pecador, p. 31.

É oportuno observar que P.G. Müller, no artigo citado, estuda e refuta a objeção "Jesus, sim — Igreja, não", é citado por Alvaro Barreiro no seu livro "Povo Santo e Pecador", que apresentamos em PR 391/1994, pp. 530-545; é de notar a diferença de estilo e mentalidade existente entre o livro de A. Barreiro e o de Fr. de Juanes: aquele é documentado, preciso, meticuloso, sabe pôr os pingos nos iis e ler os matizes dos textos e acontecimentos, ao passo que de Juanes é emotivo, dado a preconceitos e generalizações, que tiram à obra o caráter científico e fidedigno que seria de esperar em se tratando de temática tão deliciada.

2. A MORAL CATÓLICA

2.1. Princípio básico

Francisco de Juanes critica fortemente a Moral Católica, especialmente no que diz respeito à sexualidade: aceita o divórcio, o homossexualismo, as relações pré-matrimoniais (ver pp. 187-195). A razão pela qual o autor legitima tais práticas, é a seguinte: Deus quer que o homem seja feliz; por isto não se devem proibir os procedimentos nos quais as pessoas julgam encontrar a sua felicidade. Eis textualmente o que se lê á p.196:

"7.5 Que, na realidade, o pecado fundamental do homem é não ser feliz, não pôr os meios para ser realmente feliz. A vontade fundamental do Criador é que sejamos felizes: quem não é feliz, está, de alguma maneira, desobedecendo a Deus.
7.6.Que, sendo a primeira obrigação do homem, segundo o Evangelho de Jesus, preocupar-se com amor fraternal pela felicidade do outro, a primeiríssima obrigação desse homem é a de ser feliz ele próprio, pois quem não é feliz não pode dar felicidade — ninguém dá o que não tem —, o que é amargo amarga, o insatisfeito não satisfaz e o neurótico obsessivo neurotiza seu ambiente — o que nossos avós diziam com mais simplicidade: 'Um louco faz cem', sobretudo se for clérigo, acrescentamos nós.
7.7.Que é urgente, para a felicidade de todos, que a Igreja perca aos olhos dos fiéis o poder de legislar sobre o que é bom e o que é mau, em matéria de moralidade sexual e em qualquer outra; nosso poder deve limitar-se a pôr diante dos olhos dos crentes, com nossa palavra e nossa vida, o que o Senhor Jesus, que 'só falava o que havia escutado do Pai', julgou por bem estabelecer como lei para nossa felicidade, para nós, que, sabia, tínhamos sexo, além de siso".

As mesmas idéias ocorrem também à p. 120, servindo para ridicularizar as práticas de mortificação (jejum, abstinência e outras) das carmelitas e dos fiéis católicos em geral:

"É vontade de Deus que todos sejamos felizes e que soframos o menos possível. Portanto quem, voluntariamente, sem benefício algum para ninguém à sua volta, se impõe algum sofrimento físico, psíquico ou moral, está desobedecendo a Deus, contrariando sua vontade, pois 'tu abrigas, Senhor, pensamentos de bondade e não de aflição a respeito de todas as criaturas', como diz a Escritura".

Como se vê, felicidade é aqui entendida no sentido racional ou filosófico da palavra, sem se levar em conta o conceito de felicidade decorrente das bem-aventuranças evangélicas; cf. Mt 5,3-12; Lc 6,20-26. Existe, sim, enorme alegria para o cristão que se configura à Páscoa de Cristo, morrendo ao velho homem para permitir que se forme nele a nova criatura. O autor professa uma noção subjetiva de felicidade, inspirada pelo hedonismo sensual de nossos dias. Deus quer que sejamos felizes, sim, mas seguindo Jesus Cristo, que morreu na Cruz a fim de ressurgir como o novo Adão. A felicidade dos sentidos e dos bens materiais passageiros torna-se ilusória, se não é acompanhada de radical renúncia a toda cobiça desregrada ou de mortificação dos resíduos de pecado que habitam em nós. Não há vida plena sem prévia morte ao velho homem.

Em conseqüência de suas premissas, o autor dá a entender que pecado é tão somente aquilo que prejudica o próximo; não haveria pecado do indivíduo contra Deus e contra si mesmo:

"Como podemos nós... dizer a um pobre homem ou a uma pobre mulher que pecam mortalmente ao fazerem isso ou aquilo se, em primeiro lugar, não se vê de modo algum que prejudicam alguém e, em segundo lugar, se carecemos de fundamentação revelada para sequer falar do tema?" (p. 178; ver p. 120).
"Não está em jogo nada moral, se não está em jogo o amor a alguém ou o dano a um terceiro" (p. 179).

2.2. Lei natural

O autor menospreza o conceito de lei natural, chegando a ridicularizá-lo quando diz:

"Deve-se pregar sem equívocos a generosa atitude vital de compartilhar e de multiplicar a vida — em qualidade e não só em quantidade — e seus beneficiários, insistindo mais na honestidade dos fins do que na 'moralidade intrínseca dos meios, por natureza'. Que sabemos nós e o Papa da natureza? Deixemo-la aos cientistas deste mundo; temos outras luzes, não caiamos no orgulho de querer saber tudo; já nos basta a ignorância dos mistérios da Cruz e da Ressurreição" (pp. 177s).

Nesta secção o autor parece defender o falso princípio de que o fim justifica os meios; promover a qualidade da vida seria um objetivo em vista do qual todos os meios — naturais e antinaturais — seriam lícitos. A alegação de que não conhecemos suficientemente a natureza para poder falar de lei natural, é um sofisma, pois, no caso da Moral não se trata de conhecer o makrokosmos ou o mikrokosmos, mas simplesmente de conhecer as leis segundo as quais o organismo humano funciona. As ciências da anatomia e da fisiologia conhecem o bastante para fundamentar o correto comportamento humano: não abusar do fumo, da comida, da bebida, da genitalidade...

A lei natural é a lei do Criador, impressa na natureza humana. As leis positivas não hão de ser mais do que a explicitação da lei natural, que diz: Não matar, não roubar, não adulterar, não levantar falso testemunho, honrar pai e mãe, respeitar o próprio corpo e as normas de seu funcionamento... Ora a Moral Católica está baseada na lei natural; a Igreja não vem a ser senão a porta-voz das leis do Criador, principalmente quando se trata da Ética da sexualidade. Deus não fala somente pela Escritura, mas também pela natureza que Ele criou; em conseqüência, não é necessário apontar um texto bíblico para justificar os preceitos e as proibições decorrentes da lei natural.

Às pp. 174-176 o autor propõe uma interrogação procedente de grave equívoco:

"Se é imoral todo ato sexual no qual se separa mentalmente o próprio ato da possibilidade da fecundação com vistas a um novo filho, como se explica que a doutrina oficial do Vaticano não declare imorais as relações sexuais de casais em idade avançada, ou depois da menopausa da esposa, ou depois de uma intervenção cirúrgica de extirpação do ovário por causa de tumor maligno?" (P. 175).

Salta aos olhos o sofisma: o que a S. Igreja (não se diga "o Vaticano", pois este nome designa o Estado ou a Cidade respectiva) rejeita, é a mutilação da natureza, que ocorre quando se empregam recursos artificiais; a Igreja, porém, não rejeita as relações conjugais, quando a própria natureza é estéril. O que interessa, não é procriar, mas é respeitar a natureza, que Deus fez. Aliás, a medicina mesma reconhece que qualquer contravenção às leis da natureza é daninha para o organismo humano.

Passemos agora a alguns tópicos particulares.

3. TÓPICOS PARTICULARES

Quase cada página do livro de Francisco de Juanes converge para uma crítica à Igreja. Destaquemos ainda os seguintes pontos:

3.1. A Eucaristia

O autor revela ignorância (inocente?... ou preconceituosa?) quando se refere à Eucaristia.

a) Nega a real presença de Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados como se tal presença excluísse a presença de Cristo nos irmãos e no mundo em geral. — Ora a Teologia afirma apenas que Cristo está presente na Eucaristia não apenas por sua imagem e semelhança ou por sua ação redentora, mas de maneira singular ou substancial, pois a consagração eucarística faz que a substância do pão e do vinho se converta na do corpo e sangue de Cristo. A propósito é muito eloqüente o testemunho do ex-pastor batista Francisco Almeida Araújo, que se converteu ao Catolicismo precisamente quando estudava a S. Eucaristia. Eis as suas palavras no livro "Em Defesa da Fé" pp. 74-76:

"Por que deixei de ser protestante e agora sou católico pela graça de Deus?
É o que pretendo narrar aqui, mesmo que de forma muito resumida.

Tudo aconteceu por causa de um estudo que fiz sobre a Ceia do Senhor, em 1 Coríntios 11,23-32, passagem sobre que já havia pregado tantas vezes e que tinha estudado com seriedade. Ao ler os versículos 23 e 24: 'Eu recebi do Senhor o que vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o Pão, e, depois de ter dado graças, partiu-o e disse: ISTO É O MEU CORPO, QUE É ENTREGUE POR VÓS...' Volto a afirmar: quantas vezes havia lido, estudado e pregado esse texto! Mas nesse dia foi diferente. As palavras do Senhor falaram fundo ao meu coração: 'ISTO é O MEU CORPO'.

Eu havia aprendido com meus professores de teologia, estudando nos compêndios clássicos da teologia protestante, que o texto devia ser entendido como: 'representa' o meu corpo, 'simboliza' o meu corpo. Eu havia aprendido ainda que tudo aquilo era um mero memorial, nem mesmo era sacramento, mas uma simples ordenança...
Mas ali estava a Palavra de Deus dizendo claramente: 'ISTO é O MEU CORPO'.

Sem deixar transparecer tudo que se passava em meu coração, sem nada revelar a ninguém, iniciei um estudo mais sério, mais cuidadoso, sobre o assunto. Li e reli várias vezes os Evangelhos e todo o restante do Novo Testamento em busca de uma resposta que acabasse com aquela dúvida em meu coração.

Após algum tempo de estudos, regados de lágrimas e orações, estando um dia de joelhos em meu quarto, a sós, com a Bíblia aberta sobre a cama, estudando no Evangelho de São João 6,25-71, descobri a maravilhosa verdade sobre a Eucaristia. Caiem prantos de alegria incontida. Havia poucas horas, me ajoelhava como um Pastor protestante, embora com o coração aflito, cheio de dúvidas, e eis que agora me levanto como Católico Apostólico Romano!
Deus seja Bendito para sempre!

Eu sabia que somente a Igreja Católica ensinava a verdade sobre a Eucaristia: a presença real do Cristo na hóstia e no vinho consagrados".

A Física moderna, embora tenha revolucionado o conceito de matéria, não invalidou as noções filosóficas de substância, essência e acidentes. Com efeito; as ciências naturais se desenvolvem no plano empírico e imediato, ao passo que a Filosofia vai até as causas e noções últimas. Por versarem em planos diferentes, a Filosofia e a Física não entram em choque entre si.

b) Fr. de Juanes ridiculariza o conceito de Eucaristia como perpetuação sacramental do sacrifício da Cruz.

"Insistiu-se durante séculos no aspecto sacrifical da celebração eucarística... Insistiu-se obsessivamente no caráter... cruel (Deus perdoa somente se vê que alguém paga/sofre/sangra em satisfação pelos pecados cometidos... o Deus 'desumano dos pagãos) dos sacrifícios das religiões antigas... Passados já vinte séculos, quando se livrará nossa Igreja desses vestígios sacrificais desumanos de um paganismo aparentemente superado?" (p. 117).

Dir-se-ia que o autor acusa sem avaliar bem o que está dizendo. Na verdade, Deus não precisa de pagamento nem de sangue dos homens. Todavia Ele quer resgatar do pecado o homem, usando de mais sabedoria do que se o fizesse com uma só palavra judiciária fria. Sim; Ele quis entrar dentro dos trâmites da vida humana, fazendo-se Ele mesmo homem; nasceu, trabalhou, sofreu e morreu cruelmente para santificar e transfigurar o comezinho ,ou o cotidiano da vida dos homens e fazer da própria morte a passagem para uma vida nova ou a ressurreição. Assim o homem redimido sofre e morre (como lhe é natural), mas sofre e morre certo de que esses termos negativos possuem um significado positivo, porque Deus os assumiu. E, antes de partir para o Pai, Jesus Cristo, na última ceia, quis deixar-nos a perpetuação do seu sacrifício; a Eucaristia torna presente o sacrifício da Cruz para que dele participemos como cooferentes e cooferecidos com Cristo; nós nos oferecemos com Cristo ao Pai em cada S. Missa, a fim de consagrar-Lhe nossa vida e luta de cada dia e receber o alimento necessário para continuarmos a caminhar até a plenitude da vida. É este o belo significado da Eucaristia, que nada tem de pagão; ademais a prática de imolar animais irracionais, representativos do homem, não é pagã, pois se encontra muito enfatizada na Lei de Moisés.

c) Fr. de Juanes preconiza a celebração da Eucaristia não com pão de trigo e vinho de uva, mas com pão de arroz e chá na China ou com suco de frutas em outros países. — Respondemos: a Igreja não tem autoridade sobre a matéria dos sacramentos; estes são de instituição divina, e não eclesiástica; por conseguinte, deve-se guardar o sinal escolhido por Jesus. É falso dizer que na África o vinho eucarístico é "artigo de alto luxo, acessível apenas a uma minoria de europeus geralmente hospedados em hotéis cinco estrelas" (p. 116). Na verdade, o vinho eucarístico é o menos sofisticado; é precisamente aquele que não se encontra na mesa dos hotéis de luxo.

3.2. Julgamento sem Testemunhas

O autor fala de "anulação do casamento sacramental" em vez de falar de "declaração de nulidade"; cf. pp. 26.191. A Igreja não dissolve (não anula) o casamento sacramental validamente contraído e consumado carnalmente, mas Ela pode declarar, caso haja evidência, que um casamento aparentemente válido foi sempre nulo por causa de um impedimento latente ou desconhecido. Chama a atenção a tese de Fr. de Juanes segundo a qual a Igreja deveria declarar nulo determinado casamento baseando-se apenas na alegação, dele ou dela, de que se casara sem amor e, sim, por motivos interesseiros; não seriam necessárias testemunhas para confirmar tal alegação (cf. p. 191). — Ora, via de regra, nenhum tribunal dispensa testemunhas; não bastam as alegações das pessoas contendentes para que o juiz possa formar a sua consciência.

3.3. Processos de Beatificação e Canonização

O autor é infenso à Prelazia do Opus Dei e não deixa de o manifestar mais de uma vez; contesta, por exemplo, a Beatificação de Mons. Escrivá de Balaguer, fundador de tal instituição. Parece assim ignorar o afluxo de multidão que esta solenidade provocou na cidade de Roma; eram milhares e milhares de fiéis beneficiados pelo Caminho apontado por Mons. Escrivá para seguir Jesus Cristo.

Quanto aos milagres necessários para a Beatificação e Canonização de um(a) Servo(a) de Deus, Fr. de Juanes usa de sátira. Esquece a precisão com que a Igreja examina os fatos portentosos a Ela apresentados, havendo mesmo um Advogado do Diabo para levantar todas as possíveis objeções ao reconhecimento do milagre. Cf. p.241.

3.4.A inquisição
O autor não podia deixar de mencionar a Inquisição na sua catilinária contra a Igreja. — A propósito foi publicado o livro do Prof. João Bernardino Gonzaga: A Inquisição em seu Mundo, Ed. Saraiva, São Paulo, livro analisado em PR 383/1994, pp. 158-167. A obra reconstitui o ambiente da Idade Média e ajuda o leitor a compreender a Inquisição como os medievais a entendiam, e não como o homem do século XX, dotado de outros referenciais, a considera.

3.5. As quinze acusações finais

No fim do livro são catalogadas quinze acusações levantadas contra a Igreja a partir do seu passado; cf. pp. 219s.

Quem as lê, pode ficar impressionado, mas, refletindo um pouco, verificará que

1)  o autor escreve em estilo de panfleto, generalizando problemas, longe da exatidão que caracteriza uma obra científica, merecedora de consideração. Quem quer ser justo ao analisar a história, deve procurar remontar à época passada e investigar os parâmetros de que dispunham os antepassados para pensar e agir. Vários fatos que teoricamente são inconcebíveis ao homem moderno, não horrorizavam os antigos, mesmo os mais virtuosos;

2)  o autor põe no mesmo plano o essencial e o secundário. Nenhum fiel católico devidamente ilustrado nega erros dos homens da Igreja; sabe, porém, que tais erros não afetaram a autenticidade da fé e a missão santificadora da Igreja-sacramento. Muito oportuna a este respeito é a obra de Álvaro Barreiro: "Povo Santo e Pecador, Ed. Loyola, São Paulo 1994;

3)  há na lista em pauta acusações falsas ou improcedentes, que atestam a superficialidade e o preconceito do autor. Assim
a) nunca "foi declarada infalível e portanto intocável a ciência filológica do benemérito tradutor da Vulgata, versão latina da Bíblia" (p.220). — Na verdade, o autor alude a uma afirmação do Concílio de Trento (1545-1563): este apenas declarou que a tradução latina dita Vulgata podia ser, no turbilhão das diversas traduções vernáculas efetuadas no século XVI, considerada isenta de erros teológicos...; isto estava longe de implicar infalibilidade filológica. O Papa Pio XII o comenta em Carta dirigida ao Episcopado da Itália (1941):

"O Concílio de Trento declarou autêntica a Vulgata em sentido Jurídico, isto é, dotada de autoridade para fundamentar a fé e a Moral, mas não excluiu possíveis divergências da Vulgata em relação ao texto original e a outras traduções, como todo bom manual de Introdução Bíblica expõe claramente, de acordo com as Atas mesmas do Concílio de Trento" (En-quirídio Bíblico, no 527).

b) Paulo VI "terá declarado verdade revelada não somente certos dogmas, mas até as palavras de sua formulação, como no caso do mistério eucarístico" (pp. 220s). — Na verdade, deu-se o seguinte: durante o Concílio do Vaticano II (1962-1965), os teólogos holandeses tentaram reformular o dogma eucarístico, propondo as palavras "transfinalização" e "transignificação" em lugar de "transubstanciação", pois alegavam que este vocábulo clássico não é inteligível ao homem de hoje. A proposta, porém, causou, de imediato, vários mal-entendidos e desvios da fé no povo de Deus; daí a encíclica de Paulo VI Mysterium Fidei (1965), que reafirmava a necessidade de se manter o vocabulário habitual para evitar os equívocos daninhos, que a experiência apontava. Este gesto do Papa está longe de equivaler a "declarar como verdade revelada... as palavras de formulação de um dogma".

Estes dois últimos espécimes de crítica bem mostram a índole passional e preconcebida do livro de Fr. de Juanes.
Muitos outros tópicos poderiam ainda ser abordados. 0 que foi dito, porém, já permite formular uma conclusão.

4. CONCLUSÃO

As páginas do livro analisado tendem a reduzir o Cristianismo a um movimento "místico", de índole "democrática", inspirado pelo lema de que "o pecado fundamental do homem é não ser feliz, não pôr os meios para ser realmente feliz. Quem não é feliz, está, de alguma maneira, desobedecendo a Deus" (p. 196). Estão subjacentes a esta concepção a eclesiologia do protestantismo e o subjetivismo hedonístico da sociedade contemporânea. — Ora é preciso observar que, quando alguém se chega a Deus, deve admitir que Deus é o centro e o referencial, e não o homem. Principalmente quem professa o Cristianismo, há de tomar consciência de que o Deus-referencial é o Deus "que tanto amou o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3,16). Ninguém vai a Deus Pai senão por Cristo Crucificado, que vive no sacramento da sua Igreja (cf. 1Cor 12,12-27; Cl 1,24). Daí a necessidade de fé não somente em Deus e em Jesus Cristo, mas também na Igreja. Esta é inseparável de Jesus Cristo. "Não pode ter Deus por Pai no céu quem não tem a Igreja por Mãe na terra" (S. Cipriano de Cartago, Sobre a Unidade da Igreja, cap. 4). Pode-se indicar, como contra-parte do livro de Fr. de Juanes, o de Alvaro Barreiro: Povo Santo e Pecador. A Igreja questionada e acreditada. Ed. Loyola, São Paulo 1994. É obra que considera sinceramente os aspectos humanos e limitados da Igreja, mas apresenta outrossim uma visão global do mistério da Igreja, Esposa de Cristo (cf. Ef 5,25-27) e Mãe de todos os cristãos (cf. Gl 4,26), como muito bem apregoa o Cardeal Henri de Lubac:

"Pois bem, esta Igreja santa às vezes é abandonada por alguns que receberam tudo dela e que se tornaram cegos aos seus dons. Por vezes, em certos momentos como agora, se mofam dela alguns que continuam a receber dela seu alimento. Um vento de crítica amarga, universal e sem inteligência, chega por vezes a transtornar as cabeças e a apodrecer os corações. Um vento assolador, esterilizante, um vento destruidor, hostil ao sopro do Espírito. É então, quando contemplo o rosto humilhado de minha mãe, quando a amo mais. Sem me lançar a contra-críticas, saberei demonstrar que a amo na sua forma de escrava. E, justamente na hora em que alguns ficam hipnotizados diante dos traços de um rosto apresentado como envelhecido, o amor me fará descobrir nela, com muito mais verdade, suas forças ocultas, suas atividades silenciosas, que constituem sua perene juventude, todas as grandes coisas que nascem no seu coração e que converterão a terra por contágio ".([1])


Dom Estêvão Bettencourt (OSB)


[1] H. DE LUBAC, Paradoja y misterio de la Iglesia, 25.

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