Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa
“Bem-aventurado o rico que foi achado sem mancha e não
correu atraído pelo ouro, nem pôs a sua esperança no dinheiro nem nos
tesouros. Quem é este, e nós o louvaremos? Porque fez coisa maravilhosas
em sua vida.” (Ecl. 31, 8-9)
Em primeiro lugar, é preciso dizer que falar em dinheiro pode parecer uma coisa deselegante e nada nobre, coisa de burguês tacanho que não tem apreço pelos valores mais altos do espírito, como a religião e as várias expressões da cultura e da civilização. E se é um religioso quem fala em dinheiro, arrisca-se a ser alcunhado com os piores apodos. É por isso que normalmente as pessoas gostam de tratar do assunto dinheiro com toda discrição para obter as informações úteis para a administração das suas economias e ao mesmo tempo ostentar uma aparência nem sempre sincera de serem liberais e filantrópicas.
No entanto, cumpre recordar que o dinheiro e as riquezas em geral representam um dos temas mais desenvolvidos da Sagrada Escritura que nos oferece diferentes considerações a respeito, seja nos livros sapienciais do Antigo Testamento, seja nos Evangelhos, seja nas Epistolas. E também os grandes filósofos nos proporcionam suas sábias reflexões.
Assim, por exemplo, temos aquele célebre versículo do Eclesiastes que, à primeira vista, causa assombro a nós católicos habituados aos ensinamentos da Igreja e do Evangelho: “pois tudo obedece ao dinheiro. (Ecl. 10, 19).” Com efeito, esta passagem do Antigo Testamento parece dificilmente conciliável com o Sermão da Montanha: “Não podeis servir a Deus e à riqueza (Mt. 6, 24)”. Temos também a parábola do feitor infiel que, sob uma imagem negativa da riqueza, ensina os cristãos a fazer obras de caridade com o supérfluo do seu pecúlio (Lc. 16, 1-9). Igualmente na primeira Epístola de São Paulo a Timóteo há uma advertência grave não só para não confiar na incerteza das riquezas e distribuí-las entre os pobres, mas também uma incisiva doutrina: o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males (cf. II Tim. 6, 8 e 17).
Por outro lado, temos a sabedoria dos antigos gregos a quem tanto devemos em nossa herança cultural. Como se sabe, Platão foi um crítico cáustico dos sofistas que pretendiam vender uma falsa sabedoria por dinheiro e, na sua “República”, não só propõe que os governantes não possuam propriedade mas também defende a tese de que os mercadores deveriam distinguir-se pela temperança. Trata-se, portanto, de uma visão não muito favorável à posse e acúmulo das riquezas. Já Aristóteles, que se caracteriza por um senso bem realista das coisas, diz que a felicidade é fruto da vida virtuosa e os bens exteriores, como o dinheiro, são condições prévias necessárias sem as quais não é possível ter uma vida boa e praticar certas ações nobres.
Na Idade Média, quando a humanidade chegou ao mais alto grau de sabedoria e nobreza, quando multidões de jovens cheios de fé e generosidade renunciavam aos bens deste mundo para servir a Deus em obras de misericórdia e floresciam as ordens mendicantes, Santo Tomás de Aquino tratou do tema da felicidade e das riquezas. Na Suma Teológica, pergunta se a felicidade pode consistir nas riquezas. Na questão 2, art. 1º, da IªIIªe da Suma chama-nos a atenção, principalmente, a resposta que dá à primeira objeção baseada no versículo do Eclesiastes: se a felicidade consiste no fim último, a felicidade deve residir naquilo que domina o afeto do homem; ora, tudo obedece ao dinheiro, logo, nas riquezas consiste a felicidade do homem. O santo doutor responde a esta objeção dizendo que todas as coisas corporais obedecem ao dinheiro quanto à multidão dos estultos, que só conhecem os bens corporais que se podem adquirir por dinheiro. Mas o juízo sobre os bens humanos não deve ser formado a partir dos estultos e sim dos sábios.
Realmente, causa surpresa essa solução proposta por Santo Tomás. Em primeiro lugar, porque não adota uma interpretação do sentido literal do texto sagrado: “todas as coisas obedecem ao dinheiro.” Em segundo lugar, porque não desenvolve uma distinção do conceito de obediência. E os escolásticos eram mestres em formular distinções. Em terceiro lugar, porque Aristóteles, a quem ele tanto acatava, diz que o dinheiro é uma condição prévia para a felicidade. Ora, se trata de uma condição indispensável, há de haver obediência. Logo, o homem, de algum modo, tem de submeter-se a tais bens como coisas realmente necessárias e indispensáveis.
É claro que Santo Tomás não negava essas necessidades da vida humana. Mas causa estranheza o fato de negar que o homem tenha de obedecer ao dinheiro (que ele admitia ser necessário), em vez de tentar explicar como essa obediência se dá.
A meu ver, quem dá uma boa interpretação do famoso versículo do Eclesiastes é o padre Emmanuel André em sua obra “Meditations pour tous les jours de l’année liturgique”, fazendo uma distinção: há duas maneiras de obedecer ao dinheiro, uma por necessidade e constrangimento, outra por amor quando o homem se apega desordenadamente aos bens materiais.
Outrosssim, merece um comentário a solução dada pelo doutor angélico à segunda objeção baseada na definição de felicidade de Boécio: felicidade é o estado perfeito em razão da presença de todos os bens. A objeção consiste em dizer que pelo dinheiro parece possível adquirir todos os bens. Na resposta Santo Tomás diz que pelo dinheiro se podem possuir apenas todos os bens materiais, mas não os espirituais que não se podem vender, e cita o livro dos Provérbios: “De que serve ao insensato ter grandes riquezas, não podendo comprar com elas a sabedoria? (Pr. 17, 16). De fato, pode-se comprar a ciência mas jamais a sabedoria. A qual, pelo contrário, é mais fácil ser encontrada nas pessoas mais desprovidas. E mesmo no caso da ciência, não só porque depende da capacidade intelectual do discípulo que deseja adquiri-la, mas também em atenção à sua própria nobreza, a rigor não se deveria dizer que se paga um salário ao mestre que a ensina e exerce sua função como um sacerdócio, mas sim que é digno de um honorário pelo grande bem que faz de comunicar uma verdade que não tem preço. De qualquer modo, a própria transmissão da ciência pressupõe as condições exteriores de que fala Aristóteles.
Todavia, é preciso dizer que realmente Santo Tomás prova que a bem-aventurança do homem não consiste nas riquezas e o faz com argumentos de grande beleza. Na solução, citando primeiro Boécio que diz que as riquezas brilham mais quando se difundem do que quando se acumulam e a avareza torna os homens odiosos enquanto a liberalidade os faz ilustres, e depois citando Aristóteles que distingue riquezas naturais (aquelas pelas quais o homem satisfaz a suas necessidades, como alimento, bebida vestimenta, moradia) e riquezas artificiais (aquelas inventadas pelo engenho humano a fim de facilitar a permuta dos bens venais), Santo Tomás diz que a felicidade não pode consistir nem nas riquezas naturais nem nas riquezas artificiais. Não pode consistir nas riquezas naturais porque estas são procuradas para sustento da natureza humana, estão ordenadas ao homem como um fim, pois na ordem natural todas as coisas são infra-humanas e feitas para o homem. Não pode tampouco a felicidade consistir nas riquezas artificiais porque estas são procuradas por causa das riquezas naturais (não seriam procuradas se por meio delas não se pudessem adquirir as riquezas naturais), de modo que têm muito menos ainda a razão de fim último.
Em conclusão desta modesta glosa à questão do dinheiro e da felicidade em Santo Tomás, pode dizer-se que mesmo quando Santo Tomás não oferece a melhor solução de um problema, ele oferece ao menos o caminho para descobrir a solução: o seu precioso método de fazer distinções.
Deve-se, sim, conforme a Escritura, obedecer ao dinheiro. Obedecer por necessidade, não por uma vil paixão. Os velhos paulistas, que se distinguiam por ser em geral homens de espírito empreendedor e laboriosos, ao mesmo tempo que auxiliavam as obras de caridade, tinham prudência e diziam: dinheiro não aguenta desaforo!
Anápolis, 15 de agosto de 2012.
Solenidade da Assunção de Nossa Senhora
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