Prazado Rafael de Angeli, Araraquara – SP
Paz e bem!
Antes de mais nada, quero aproveitar a oportunidade para, como sacerdote, para agradecer a você e ao seu ministério
pelo bonito e valoroso trabalho que vêm realizando na Igreja Católica Apostólica Romana. Já faz algum tempo que tenho
me dedicado com ardoroso afinco a acompanhar os nossos músicos, seja com as minhas orações, seja adquirindo cds e
dvds como forma de ajudar no sustento das bandas, seja – também – incentivando nossos fiéis a apreciarem mais e
melhor a música católica.
Muito antes de descobrir minha vocação presbiteral e entrar para o seminário, tive a graça de poder trabalhar em uma
rádio comunitária local, fazendo um programa religioso que ia ao ar diariamente e que contava, basicamente, com a
música religiosa como um de seus principais fundamentos. A partir de então criei o hábito de, com a maior
periodicidade possível, adquirir cds católicos para manter o programa atualizado e também para incrementar o
repertório do ministério de música do qual eu fazia parte. Resultado: num intervalo de 10 anos, aproximadamente,
acabei adquirindo uma incomensurável “musicoteca religiosa” que muito explicitamente demonstrava a intensidade do
meu gosto musical.
Uma das coisas que comentava frequentemente com ministérios de música, seminaristas, diáconos e padres é sobre o
vertiginoso e qualitativo crescimento que a música católica vem alcançando nestes últimos tempos, a ponto de se
equiparar, e até superar em alguns casos, a já reconhecida música gospel. Fico deveras feliz de saber que a banda Canal
da Graça tem contribuído, e muito positivamente, para a mudança desse cenário musical.
Não obstante isso, confesso que fiquei visivelmente intrigado quando recebi seu e-mail, seja pelo conteúdo seja pela
forma como se apresentou a mim, descrevendo extensivamente o meu nome, a paróquia onde trabalho, a cidade onde
moro e os meus e-mails, como se, de fato, houvesse desvendado um enigma misterioso, complexo e inacessível. Ora,
meu filho, parece desnecessário dizer que um padre, como você bem sabe, pela posição que ocupa na Igreja e pelo
grande número de pessoas que tem em volta de si, é uma pessoa que se encontra diária e incessantemente exposta na
sociedade, não havendo, pois, necessidade de grandes esforços e artimanhas para descobrir seu endereço, paróquia
onde atende e, como acontece no presente caso, o seu e-mail e página no Facebook. A própria Igreja, através de seu
Diretório Litúrgico, fornece anualmente aos fiéis uma lista não menos detalhista do que a internet com os nomes e os
principais dados de todos os padres do Brasil.
Mas vamos ao conteúdo de seu e-mail, que é o que realmente importa. Você me enviou dois e-mails, um para o meu
endereço no Hotmail, que foi recebido às 20:58:47h, e outro para meu endereço no Yahoo, recebido às 20:58:52h,
ambos com a mesma redação e o mesmo pedido - que, segundo afirmou, estava sendo feito em nome de três
gravadoras (Atração Fonográfica, CODIMUC e Paulinas-COMEP) – de que seja removido o blog “Clave do Céu”.
Pois bem. Inicialmente, gostaria de deixar bem claro que sou o mentor e o principal administrador do blog “Clave do
Céu”, que atualmente possui 05 (cinco) e não 03 (três) administradores, como você equivocadamente fez questão de
declinar em sua exposição. Gostaria também de esclarecer, para extirpar de uma vez por todas quaisquer dúvidas sobre
o fundamento da não identificação dos administradores no blog, que a ausência de nomes não se deve a uma omissão
culposa ou mesmo uma tentativa de se esquivar de possíveis consequencias legais e jurídicas em decorrência de nossa
iniciativa. Absolutamente.
Dentre outras tantas oportunidades que o Senhor me concedeu, tive também a graça de, no ano de 2005, me graduar no curso de Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. Além da faculdade, dos inúmeros trabalhos na área jurídica que realizei como advogado e como assessor de juiz de direito, os estudos que, há tempos, venho fazendo sobre o tema direitos autorais na internet me dão a tranquilidade e a segurança suficientes para não ter qualquer receio de me identificar como um dos responsáveis pelo blog, uma vez que, além de não se configurar como uma atividade criminosa (a mal conceituada “pirataria”, como muitos a preferem chamar) – por faltar um dos elementos do tipo penal, qual seja, a “intenção de auferir lucro direto ou indireto” -, a nossa iniciativa, o compartilhamento gratuito de músicas religiosas pela internet, ainda não foi específica e satisfatoriamente regulada pelo ordenamento jurídico pátrio, que, até a aprovação do projeto de lei que está tramitando no Congresso sobre o assunto, tem se utilizado analogicamente, e muito controvertidamente, da já ultrapassada Lei de Direitos Autorais (Lei 9610/98), que também não aborda sobre os direitos do autor na internet, e da famigerada DMCA, que, para a infelicidade de muitos, não foi recepcionada nem como lei nem como tratado internacional no Brasil. Assim, acaba prevalecendo o jargão de que, no mundo jurídico, o que não é proibido então é permitido. Aliás, essa é a razão pela qual, diariamente, nos deparamos com dezenas de milhares de blogs e sites que oferecem uma diversidade inimaginável de programas, documentários, livros, shows, filmes e músicas – inclusive religiosas – para baixar gratuitamente.
Até poderíamos discorrer mais aprofundadamente sobre esse assunto, mas definitivamente esse não foi o motivo que fundamentou o seu pedido, baseado, exclusivamente, em critérios econômicos e financeiros relacionados aos lucros e aos gastos da produção e vendagem de um cd.
Concordo com você quando aborda sobre a excessiva tributação brasileira e sobre os altos encargos suportados por quem se lança no mar cada vez mais arriscado do mercado fonográfico. Concordo com você também quando diz sobre o alto custo da produção de um cd/dvd e quando demonstra o baixo percentual que é destinado aos músicos de toda a renda obtida com a obra. Do ponto de vista de viabilidade comercial, até os mais incautos observadores são forçados a reconhecer que se trata de uma atividade cada vez mais difícil e desafiadora para os artistas em geral.
Diga-se de passagem, esse é um dos principais motivos pelos quais sempre fiz questão de adquirir cds e dvds originais de cantores católicos e incentivar nossos paroquianos e amigos a fazerem o mesmo, tanto como forma de divulgar os trabalhos artísticos realizados na Igreja quanto como forma de incentiva e ajudar na sustentação da obra evangelizadora concretizada através música.
Por outro lado, quando celebro Missas e batizados, quando assisto a matrimônios ou frequento grupos de jovens e grupos de oração, quando participo de ensaios de ministérios de músicas e corais de nossa Igreja Particular me deparo uma outra realidade sintomática, tão triste e escandalosa quanto aquela já descrita em relação aos músicos que tanto admiro e valorizo: repertórios musicais escassos e muitas vezes ultrapassados, falta de conhecimento acerca de novos artistas e novos trabalhos musicais, tudo isso relacionado a uma crescente e preocupante utilização de músicas evangélicas/protestantes nas celebrações, músicas essas que, não sei por que cargas d’água, são encontradas muito mais facilmente na internet para download e cujo compartilhamento gratuito é aceito ou tolerado com muito mais condescendência por parte dos artistas do mundo gospel.
Em meio a essa realidade tão entristecedora, eu, com centenas de cds aqui parados, sem qualquer utilidade prática além da minha própria satisfação musical, me pus a pensar: vale a pena guardar só para mim tantas músicas lindíssimas, que poderiam ser repassadas adiante para comunidades, ministérios e grupos da Igreja a fim de ajudar na evangelização de tantas pessoas? Vale a pena comprar tantos cds/dvds para fomentar a divulgação da música católica e ver um número cada vez maior de fiéis aproximando-se de cantores evangélicos e músicas gospel, facilmente disponíveis na internet, por não encontrar novidades musicais na Igreja Católica a menos que possam pagar R$18,00 ou R$20,00 reais por um cd original? Em outras palavras: ouvir lançamentos musicais católicos se tornou um privilégio acessível apenas a quem tem dinheiro para pagar por eles? Seria isso algum tipo de retorno à simonia, agora na modalidade musical?
Foi por essas e outras razões, que talvez só um pastor cheio de zelo pelas ovelhas consiga entender, que tomei a audaciosa decisão de criar o que, pelo menos inicialmente, seria um blog para disponibilizar na internet os cds que adquiri de forma lícita e digna, espaço este onde a Igreja Católica, apesar de todos os clamores de Sua Santidade, Bento XVI, tem perdido muito território, inclusive em relação à música evangélica.
Foi por essas e outras razões que saí em busca de pessoas, que pudessem levar a peito comigo essa ideia de difundir a presença de Deus através da música na internet, ainda que tivessem o seu nome e a sua individualidade expostos, como lamentavelmente ocorreu no presente caso.
E é por essas e outras razões que, depois de muito refletir, consultar a outros juristas e advogados, tomar a opinião de outros padres, seminaristas e também familiares meus, que cheguei à ousada conclusão de que não posso atender ao seu pedido de retirar o blog “Clave do Céu” do ar! Fazer isso, depois de tantas noites de sono perdidas, depois de tantos sacrifícios e de expor tantas pessoas que, comigo, idealizaram e concretizaram esse sonho seria uma imperdoável traição às minhas próprias convicções e, até mesmo, à minha vocação, cujo lema é: “ai de mim se não evangelizar!”.
Sei que essa minha decisão poderia, em último caso, forcá-lo(s) a procurar judicialmente um meio de impedir/obstaculizar a nossa iniciativa de compartilhar músicas católicas pela internet, mas tamanho é o meu desejo de contribuir para o crescimento e desenvolvimento de nossa música que passei a preferir assumir os riscos de minha decisão, com todos os bônus e ônus que possam acarretar, do que ter de desistir de meus sonhos de evangelizar através da música católica e, na tentativa de ajudar os cantores/gravadoras, deixar de ajudar tantas pessoas simples e humildes que talvez não tenham a mesma condição que você e eu de comprar um cd para ter acesso a músicas católicas.
Gostaria muito, querido, que essa minha decisão não implicasse em danos ou prejuízos para ninguém, e muito menos para os músicos, mas preciso reconhecer que esse chamado que Deus me fez há muito tempo e só agora foi concretizado não pode ser engavetado. Por mais que possa parecer mais razoável abandonar o “barco” e guardar todos esses cds só prá mim, como o seu pedido me faz supor que deseje, não consigo acreditar que fazendo isso eu estaria cumprindo a vontade de Deus em minha vida. Sinceramente, acho que se atendesse ao seu pedido, ficaria extremamente desmoralizado e desacreditado perante tantas pessoas da paróquia e mesmo da arquidiocese que, em palestras, reuniões e até em homilias, já me viram idealizando esse sonho.
Peço milhares de vezes perdão a você e a todos aqueles que se sentiram e se sentirão prejudicados com a nossa iniciativa, que, como frisamos no blog, é apenas a evangelização e a divulgação da música católica. Francamente, o meu coração de pastor se enche de tristeza e dor ao saber que “para vestir um santo”, terei de “desvestir outro”. Mas diante do clamor ingente de tantas pessoas carentes de uma mensagem nova que possa mudar suas vidas, eu não posso me manter silente, sob pena de violar o juramento feito no dia de minha ordenação, de que, se preciso fosse, daria a minha vida pela causa do Senhor.
Espero, e vou lutar para que os rendimentos que, a priori, poderíamos estar retirando de vocês com os downloads feitos pelos internautas possam, a posteriori, representar um aumento do público católico nos seus shows e, por que não dizer, na divulgação e na vendagem de cds e dvds, coisa que, muitos cantores, inclusive do meio secular (como Leoni, por exemplo), já reconheceram que a internet faz e muito eficientemente.
Espero e desejo também que essa minha decisão não seja tomada como uma afronta ao edificante trabalho que você e tantos outros vêm realizando. Nem como padre e nem como ser humano seria capaz de, intencionalmente, me colocar no caminho de pessoas religiosas e cristãs com o objetivo de atrapalhar ou mesmo, como você dolorosamente disse, “inibir” a continuidade do trabalho realizado na mesma Igreja para a qual fui consagrado.
Por fim, preciso dizer que, lamentavelmente, essa discussão não ficará restrita às caixas de mensagens de nossos e-mails. Muitas pessoas, aqui na cidade de Bocaiuva, na Arquidiocese de Montes Claros, e mesmo na internet já estão
sabendo desse impasse que acabou sendo gerado em relação ao blog “Clave do Céu”. Daí, inúmeros questionamentos e críticas poderão advir, principalmente porque, dessa vez, toda a problemática gira em torno não de um fiel leigo, mas de um padre, um sacerdote que, na equivocada visão de alguns, estaria causando escândalo por estar cometendo e promovendo a pirataria. Mas venhamos e convenhamos: outra grande polêmica, talvez até maior do que esta, também emerge nesse cenário, levando muitas pessoas da própria Igreja a se sentirem escandalizadas ao saber que gravadoras católicas e renomadas passaram a se voltar contra um padre que decidiu promover a evangelização através da música.
Enfim, como disse César, Imperador Romano: “Alia jacta est”. A sorte está lançada. Não estarei fechado à sugestões e ao diálogo fraterno com quem quer que seja, mas também não me deixarei convencer tão facilmente em sentido contrário ao da minha decisão, a menos que me provem, de forma irrefutável, que, na Igreja Católica, o lucro é mais importante do que a evangelização!
Um abraço fraterno e um feliz natal!
Que Deus abençoe o seu ministério!
Atenciosamente,
Padre Wagner Eduardo Dias.
Paróquia Senhor do Bonfim, Bocaiuva-MG, 24 de dezembro de 2011.
Fonte
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