quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Entrevista com o Cardeal Joseph Ratzinger sobre a Liturgia.

O Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, acaba de publicar mais um livro: Voici quel est notre Dieu (Plon, Paris, 2001).
Esta obra, como outras do mesmo Cardeal, é um livro-entrevista.
Desta vez, o entrevistador e companheiro de diálogo com o Cardeal é o jornalista Peter Seewald.
Na transcrição do diálogo, indicaremos as palavras do Eminentíssimo sr. Cardeal pela letra R. e as palavras de Seewald pela letra S. e serão colocadas em itálico, como no original.
O livro abarca o conjunto dos problemas da Fé e da Igreja em nossos dias.
Apresentamos a nossos leitores a tradução do texto em que o Cardeal Ratzinger trata da questão da situação litúrgica em nossos dias, tema que está altamente em foco, hoje.
Com efeito, após a reforma litúrgica de 1969, feita pelo Papa Paulo VI, a Liturgia se viu envolvida em verdadeira anarquia, cada um se julgando com o direito e capacidade de montar a sua Missa particular, com grave dano para a Fé, e para a unidade da Igreja.
Mas deixemos a palavra para o eminentíssimo Cardeal Ratzinger.
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A Liturgia
S. — A solenidade e a dignidade da Eucaristia provém desta realidade totalmente sublime da espiritualidade católica, a liturgia. Cada frase, cada gesto parecem nela ter seu significado próprio e esconder um mistério. Nesta liturgia terrestre, como o reconheceu o Vaticano II, os crentes participam já na “liturgia celeste” e a experimentam antecipadamente.
R. — Essa é uma abordagem muito importante. A Liturgia não é nunca apenas uma reunião de um grupo que organiza uma festa e, na verdade, se festeja a si mesmo quanto isso é possível. Em vez disso, pela participação em Cristo que se apresenta diante do Pai, nós nos mantemos na comunhão universal de toda a Igreja, e também na comunhão de todos os santos. Sim, de certo modo é a própria “liturgia celeste”. Sua grandeza, é que ela abre o céu, e nos entra no coração dos adoradores de Deus. Eis porque o prefácio termina sempre por essas palavras: nós cantamos com o coro dos serafins e dos querubins. Nós sabemos que não estamos sós, que nós somos unânimes, que a fronteira entre o céu e a terra é verdadeiramente aberta.

S. — O pai dos monges, São Basílio, o Grande, constatou que a Missa era uma tão grande revelação quanto a Sagrada Escritura. Disso ele deduziu a regra muito estrita que a liturgia não devia ser objeto de qualquer discussão nem de qualquer reforma. Se ela não é obra humana, se por ela a glória de Deus deve ser acessível aos homens, não deveria ela ser considerada como dada pelo alto e como irreformável a antiga Missa de São Gregório Magno?
R. — O Oriente e o Ocidente estão, de certo modo, divididos quanto a essa questão. A Igreja bizantina recebeu a forma de sua liturgia no século IV e V de São Basílio, e de São João Crisóstomo. Ela, assim como outras igrejas orientais, vê aí, um dom de Deus que não se pode modificar: nós a recebemos [entramos nela], nós não a fazemos (se bem que certas modificações de detalhe naturalmente aconteceram).
O Ocidente tinha um sentido muito mais forte com relação à historicidade. Também o Ocidente considerava a liturgia, no essencial, como um dom, mas um dom depositado na Igreja viva e crescente junto com ela. Pode-se perfeitamente fazer a comparação com a Sagrada Escritura. Ela também não é uma palavra de Deus que nos teria caído direta e verticalmente do céu; a Palavra de Deus é introduzida na história e se desenvolve com ela. Assim a Igreja ocidental afirmou a fundamental intangibilidade da liturgia no seu conjunto, mas deixou-a desenvolver-se historicamente tomando as devidas precauções.
Assim como o cânon da Igreja do Oriente, o cânon romano data do século IV mais ou menos. Em seguida, desenvolveram-se no Ocidente, como da mesma forma no Oriente, diferentes tipos de liturgia. Houve a liturgia galicana, a liturgia espanhola; em seguida fizeram-se sentir influências germânicas, e assim por diante. As diferentes nações que se convertiam podiam trazer sua contribuição a este crescimento, sob o olhar atento de Roma que não deixou de eliminar as excrescências. Deste modo, Roma conservou estritamente o caráter arcaico da liturgia, eu diria mesmo numa forma mais antiga que no Oriente, em todo o caso do ponto de vista teológico.
É assim que a liturgia é um processo histórico sempre vivo: o novo pode intervir, especialmente novos santos podem ser acrescentados; mas ela permanece constante, mesmo no Ocidente. É por essa razão que a Igreja podia visar fazer reformas litúrgicas. Não era preciso que fossem simplesmente supressões; elas deviam respeitar o que de vivo tinha se desenvolvido, como se age com o que vive para mantê-lo vivo. Pio X reduziu algum tanto o número das festas de santos as quais tinham se multiplicado demais. Ele tinha igualmente recolocado o domingo no lugar de honra que lhe cabe de direito e retirado partes supérfluas. São Pio V já tinha retirado dele um excesso de seqüências que nele se tinham infiltrado. O Vaticano II tinha adotado a mesma atitude que é a boa, porque o crescimento contínuo sem modificações pertence à tradição litúrgica da Igreja. Mas há uma diferença, diria eu, entre proteger uma vida que se desenvolve sabendo que essa vida, enquanto tal, não me pertence (devo estar a seu serviço e respeitar sua lei interior), e considerá-la como algo artificial, que funciona como um mecanismo que posso desmontar e tornar a montar de modo diverso.
O concílio Vaticano II, sem dúvida, tinha em vista, ao mesmo tempo, o crescimento orgânico e a renovação. Mas, por vezes, em nossos dias, se tem a tendência de praticar essa desmontagem-remontagem, e fazer o que é incompatível com a própria essência da liturgia. Não se pode simplesmente decidir em comissões professorais o que é pastoralmente mais eficaz, o que é mais prático e assim por diante. Mas é preciso considerar com um grande respeito a contribuição dos séculos e ver que complementos sensatos ou que supressões são necessárias e possíveis.
É uma advertência que se dirige a todos aqueles que se ocupam de liturgia. É nesse espírito de serviço em favor da vida que se desenvolveu e que da em nós fé secular que eles devem agir, e não como peritos autocráticos que querem inventar e fabricar o que há de melhor.

S. — Não se pode passar sob silêncio a crítica da liturgia atual. Para muitos, ela não parece suficientemente santa. Uma reforma seria necessária para torná-la de novo mais santa?
R. — Ter-se-ia necessidade, pelo menos, de uma nova consciência litúrgica, para fazer desaparecer esse espírito de fazer liturgia por capricho [um "do it yourself"]. Chegou-se ao ponto que círculos litúrgicos se fabricam para si mesmos uma liturgia do domingo.
O que resulta disso, é certamente a produção de alguns intelectuais dotados que imaginaram algo para si. Não encontro nisso Aquele que é o Totalmente-Outro, o Santo, que se dá a mim, mas apenas as capacidades de alguns. Percebo que não é isso que procuro. É pouco demais, e é uma coisa totalmente diferente.
O que há demais importante hoje, é o respeito pela liturgia, e o fato de que não se pode manipulá-la. É preciso reaprender a considerá-la como um organismo vivo e oferecido, pelo qual nós participamos da liturgia celeste. Não se trata de buscar nela nossa própria realização, e sim o dom que nos advém.
Creio que o prioritário é que esta maneira de fazer pessoal e arbitrária desapareça e que se desperte o sentido interior pelo sagrado. Numa segunda etapa, poder-se-ia ver em que domínio se suprimiram coisas demais, e que a coerência com toda a história possa se tornar de novo mais evidente e mais viva. Nesse sentido, eu mesmo tenho falado em “reforma da reforma”. Na minha opinião, deveria haver, inicialmente, um processo pedagógico, para marcar um ponto final nesse espezinhamento da liturgia por invenções pessoais.
Para a formação da consciência no domínio da liturgia, é importante também cessar de banir a forma da liturgia em vigor até 1970. Aquele que, na hora atual, intervém pela validade dessa liturgia, ou que a pratica, é tratado como um leproso: é o fim de toda tolerância. Ela é tal como não se conheceu nunca, em toda a história da Igreja. Despreza-se, desse modo, todo o passado da Igreja. Como se poderia confiar nela atualmente, se fosse assim.
Confesso que não compreendo por que razão muitos de confrades, Bispos, se submetem a esta lei de intolerância, que se opõe às reconciliações necessárias na Igreja sem razão válida. (O negrito é do tradutor).

S. — Quando virá realmente este segundo passo do qual o senhor fala, essa reforma da reforma?
R. — Exatamente como o movimento litúrgico, que resultou na reforma do Vaticano II, se desenvolveu lentamente antes de se tornar em seguida numa torrente impetuosa, assim importa que atualmente venha um impulso dos fiéis que celebram. E também que haja lugares exemplares, onde a liturgia é celebrada segundo as regras da arte e onde seja possível experimentar o que ela é realmente. Se então, do próprio interior de uma tal celebração nascer um movimento que não seja simplesmente uma coisa imposta do alto, então a renovação se fará. Creio que na nova geração um movimento que vai nessa direção está efetivamente nascendo.

S.– Uma verdadeira liturgia divina, uma liturgia para o futuro do povo crente e da Igreja, como o senhor a imagina?
R.– Fundamentalmente de tal modo que se possa, de novo, colher nela as formas dadas e aprofundá-las espiritualmente. Quando penso na época do movimento litúrgico, que eu ainda vivi, era então maravilhoso apreender pouco a pouco como se tinham elaborado as missas da quaresma, para compreender a estrutura da quaresma e de todo o missal, e muitas outras coisas ainda. Tratava-se simplesmente de descobrir a riqueza daquilo que resultou desse processo e desse crescimento e de entrar também por esse meio na glória divina que aí se oferecia. Creio que se trata reaprender a escutar — “Escuta, meu filho! “dizia São Bento — e de nos percebermos a nós mesmos não tanto como autores da ação litúrgica, mas como seus beneficiários.

S.– Será preciso celebrar de novo a missa em latim?
R. — De um modo geral, isso não é mais possível e sem dúvida isso não é desejável.
É evidente que a liturgia da Palavra, pelo menos, deve se fazer nas línguas vernáculas. Entretanto, na minha opinião, deveria haver uma nova abertura para o latim.
Celebrar a missa em latim aparece atualmente como um pecado. Exclui-se assim, também as possibilidades de comunicação que são tão necessárias nas regiões pluri lingüísticas. Assim, o vigário da catedral de Avignon me contou que, um domingo, se apresentaram para assistir a missa três grupos lingüísticos diferentes. Ele lhes propôs de rezar juntos o cânon da missa em latim e assim todos poderiam celebrar juntos. Os três grupos recusaram: era preciso para cada grupo um elemento particular. Pensamos também nos lugares turísticos: certamente seria uma coisa bela reconhecer-se mutuamente naquilo que se tem em comum. Seria preciso ter tais eventualidades presentes ao espírito. Quando, nas grandes celebrações litúrgicas romanas, ninguém mais sabe cantar o Kyrie ou o Sanctus, ninguém mais sabe o que significa “Glória”, trata-se então de um déficit cultural e de uma perda de pontos comuns. Eis porque, na minha opinião, a liturgia da Palavra deveria se fazer, em todo caso, na língua vernácula, mas que seria preciso que subsistisse um fundo comum em latim, que nos liga a todos.

S.– O escritor Martin Mosebach conta uma pequena história a respeito de uma missa. Isso aconteceu, há muito tempo, na ilha de Capri. Um dia, desembarca um padre inglês, que se fez reconhecer como padre por suas roupas, o que tinha se tornado raro, mesmo na Itália do sul. Quando se tornou claro que o homem de batina queria seriamente celebrar uma missa, todos os dias, se lhe atribuiu, depois de muitas hesitações, uma capela situada num promontório rochoso em precipício sobre o mar, o monte Tibério, sobre o qual estava situado outrora a vila Jovis, uma das numerosas residências do Imperador Tibério. Esta capela era aberta apenas uma vez por ano, no dia 8 de setembro, para a festa da Natividade da Virgem Maria. No resto do ano, ela ficava abandonada aos ratos que cavavam buracos no fundo das gavetas da sacristia.
O Padre inglês, um homem prático, e que não era um grande teólogo, se pôs a caminho. Ele subiu a ladeira ríspida e se deliciou com a bela vista sobre o golfo. Ele teve alguma dificuldade para fazer funcionar a fechadura enferrujada da capela. Ele entrou nesse lugar que cheirava a mofo, acompanhado por um belo raio de sol. A porta metálica do tabernáculo estava aberta, as velas estavam inteiramente consumidos, as cadeiras reviradas, e a sacristia tinha o aspeto de lugar abandonado às pressas. Vasos sujos, uma capa de altar apodrecida, um cálice estilo kitch, toalhas de linho de altar tinha colado umas às outras, um missal caindo aos pedaços. Sim, até mesmo o crucifixo estava torcido.
O padre olhou atentamente tudo isso e refletiu longo tempo. Ele abriu a janela, pegou uma vassoura de palha, que estava caída num canto, e se pôs a varrer toda a capela. Ele pegou o crucifixo, beijou-o e o posou sobre o armário da sacristia. Ele limpou o cálice e reergueu os candelabros. Quando ele descobriu a corda do sino, trepou numa escada no exterior da capela e amarrou a corda a um sino. O encanto estava agora rompido.
Ele colocou uma estola roxa acetinada toda manchada. Derramou um pouco de água que tinha trazido numa garrafa plástica num pequeno pote e se pôs a rezar; ele acrescentou um pouco de sal, fez os gestos de bênção e colocou a água em pequenas pias de água benta em forma de concha ao lado da entrada; poder-se-ia imaginar ouvir a pedra gemer como se ela despertasse de novo. E quando ele badalou o sino com a ajuda da corda, aproximaram-se vindos de longe os primeiros fiéis, mulheres e crianças, e logo a capela ficou cheia.
A missa podia começar. O sacerdote se inclinou diante do altar e começou pelas palavras: Introibo ad altare Dei.
Enquanto o homem de batina purificava o lugar, enquanto ele acendia as velas e benzia a água, quando ele tirava a poeira e expulsava para um canto as ratoeiras, um observador atento, devia ter a impressão que alguma coisa especial se passava. Tal como Abel ou Noé, ele tinha construído um altar antes de sacrificar. E como Moisés, ele delimitou o espaço para o tabernáculo. Era a preparação e a delimitação do espaço sagrado.
R. — Esse texto de Mosebach naturalmente é muito poético, mas, no total, a situação em Capri não era tão desesperadora quanto parecia. Mas é verdade que a preparação exterior e interior vão juntas. A missão de São Francisco começou da mesma maneira. Ele ouviu as célebres palavras de Cristo: “É preciso que reconstruas a minha Igreja”. Ele as aplicou inicialmente a essa igreja arruinada, à Porciúncula, que ele restaurou e reconstruiu. Ele notou, em seguida, que ele precisava fazer muito mais: reconstruir a Igreja viva.
Mas este trabalho manual inicial faz parte dessa reconstrução. Ele é muito importante vigiar para que o espaço, a Igreja, seja sempre preparado de novo, que sua santidade interior como a exterior seja sempre perceptível e reconhecível. É verdade que nós temos em todo o mundo, graças a Deus, igrejas maravilhosas cujo caráter sagrado seria necessário reaprender a amar. A chama acesa diante do Santíssimo Sacramento permite-nos perceber uma presença silenciosa permanente. Muitas igrejas, hoje, parecem teatros, dos quais se admira a beleza do passado mais do que como meio de nossas próprias atividades; constata-se então uma perda interior do sentido do sagrado. Reencontrar este sentido e preparar este espaço e exterior, não pode ser feito senão sob a condição de entrar na celebração de modo a encontrar o sagrado efetivamente nela. 

Tradução e comentário por Orlando Fedeli

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